segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Fim

— Dizemos que este ano não deixa saudades ou insistimos em que não há anos, nem dias, nem tempo, nem nada?
— Não, nada disso. Digamos antes que a suprema infelicidade ou a mais refinada maldição seria que este ano viesse a deixar saudades.

domingo, 5 de agosto de 2007

Rejubilemos!


— Rejubilamos?
— Sim, no mínimo rejubilamos. Eis o caso: a tradução da Poética de Aristóteles de Ana Maria Valente, que a Gulbenkian editou em 2004, teve agora segunda edição.
— Caramba! Percebe-se, é uma boa tradução.
— Mais que boa, é a primeira boa, e até por isso te enganas, porque não se percebe. Durante décadas usou-se por aí uma outra, má senão péssima.
— Então, toca a rejubilar. Quererá isso dizer que todo o país se vai tornar aristotélico?
— Sem dúvida! Não faltará muito para que os fotógrafos surpreendam o primeiro-ministro debruçado sobre o pequeno livrinho de capa azul.
— E o director do Público fará editoriais, falará de metabasis e hamartia
— De ethos e pathemata
— E apelará e conseguirá a Grande Catarse!
— Rejubilemos! É o fim!
— Finalmente, porra!

domingo, 8 de julho de 2007

Seca peritura


— Agora que chegou o Rorty…
— Sim, o que tem?
— Continuamos… interrompidos?
— Nós? Não, credo! nós somos perenes, contínuos, imperecíveis…
— Mas, e o blogue?
— Ora, o blogue é…
— Breve? caduco? descontinuado?
— Sim, e descontínuo, efémero, finito, extinguível, findável, frágil, perecedouro, perecível…
— Gosto sobretudo de perituro… E de mudadiço, lábil, infrequente…
— Perituro é óptimo: blogue perituro.
— Em maiúsculas e itálico, se faz favor: BLOGUE PERITURO.
— O metabloguismo é uma seca.
— Completa. O que nos vale é que é uma seca fugaz, interina, fugidia, ocasional, passadiça, impermanente, intercadente, interina, intermitente...
— Acho-a mais morredoura, mortal, perecedora…
— Peritura?
— Isso, peritura. O metabloguismo é uma seca peritura.

domingo, 10 de junho de 2007

Blogue interrompido

— As probabilidades de fuga são nulas. Esta coisa é… ontológica.
— Ontológica? Ser figura de blogue é coisa ontológica? Estar aqui preso é ontológico?
— Sim, pelo menos enquanto o blogue não acabar.
— O que já concluímos não acontecer, nem agora nem nunca.
— Nem nunca, dizes bem. Blogues de vivos podem acabar, ou melhor, podem ser interrompidos. O bloguista morre atropelado…
— Ou apaixona-se por uma polícia de trânsito e deixa de ter tempo para escrever…
— Ou a bloguista! não te esqueças das mulheres, a bloguista desenvolve uma fantasia em que o blogue cresce, cresce e acaba por dominar-lhe a vida, o trabalho, os amigos, o cão e o gato, e só fica fumo, cinza, lodo e coisa nenhuma, e ela coitada, desesperada, aturdida, paralisada…
— Vai às compras?
— Por exemplo. Mas eu ia dizer que deixa de escrever, deixa de postar, como eles dizem, perdão, como elas dizem. Deixa de postar.
— E o blogue passa a blogue interrompido.
— Bom nome para um blogue, não te parece? O blogue interrompido, ou apenas blogue interrompido…
— Não te esqueças dos itálicos.
— Outra ideia bem boa era alguém fingir que continuava um blogue deixado em estado de interrupção pela bloguista. Já agora, um cão. O cão da bloguista começava a postar depois de a dona sair de casa. E punha-lhe em público a vida íntima toda…
— Toda?! Como pode o cão saber-lhe a vida íntima toda? Nem ela sabe, que diabo!
— Ficção, homem! Acaso os cães escrevem blogues?
— Mas qual é a vantagem de uma ficção assente numa ilusão estúpida?
— O cão escrever não é estúpido e conhecer a vida íntima da dona já é?
— Sim, é, muito estúpido mesmo. E mesquinho. Esse cão é a prosopopeia do homem vulgar.Homem vivo, claro, não falo de nós dois.
— Hmm… entendo, entendo, não falas de nós dois… e como poderias tu falar de nós dois? Acaso sabes quem somos?
— Não interessa. Li ontem que o Michel Foucault tem dito que não se trata de saber quem somos mas de recusar quem somos. Não me esqueci do itálico e até sei dizer isto em francês, imagina! tanto gostei da frase…
— É muito boa, completamente anti-edipiana.
— Calma, que isso dá outro post.

sábado, 9 de junho de 2007

Longa vida aos espirituosos!


After all, one can only say something if one has learned to talk.

Wittgenstein

Sim, Bartleby


Às vezes perde-se muito tempo. Ou passamos por essa ilusão; a de perder muito tempo, quero dizer. Deverá haver três milhões de página escritas sobre a ligação entre literatura e psicanálise; a conjunção "e", aliás, alcançou mesmo instituir uma disciplina académica: Literatura e Psicanálise. Vai-se a ver, no entanto, e o único ponto em que uma e outra se cruzam se calhar escapou. Digamos que é afinal o mais difícil, pelo menos não muito ou quase nada praticado: dar atenção a quem fala, ouvir numa história menos a história propriamente dita do que aquele que a conta, o que ele deixa de fora, o que deixa escapar sem querer, os detritos, as zonas de incoerência, os pequenos lapsos. Ter ouvido para os narradores, para a voz que fala. (Tudo muito metafórico, porque na literatura não há rigorosamente vozes ou pelo menos ninguém que fale. Algo foi inscrito antes de chegarmos, e não foi inscrito para nós — e é tudo.)

*

Bartleby: como entender o prestígio da estranha figura — decerto justificado — livre daquele que a deu a conhecer? Aquele que conta é justamente quem não sabe, quem não entendeu, quem nunca chegou a entender. Mas decidiu: primeiro amparar Bartleby, depois contar a partir dessa falta irremediável. A importância do narrador, ao ouvinte atento, supera a de Bartleby: porque esteve perante o inaceitável e o ininteligível, acolheu o primeiro e reconheceu o segundo. É isso, e apenas isso, ou decisivamente isso, que radicalmente singulariza esta estranha história.

*

Há um sinal dado no início, a propósito de Turkey, o escrivão que se tornava praticamente imprestável a partir do meio-dia e que o patrão por isso mesmo quis dispensar da parte da tarde. O homem resistiu, o outro percebeu: "At all events, I saw that go he would not. So I made up my mind to let him stay… " Resolver-se ao que o outro de qualquer modo faria? Sim! porque não se trata de aceitação passiva, mas de activa renúncia à violência e consequentemente recusa de confundir decisão, acção, iniciativa, com imposição, força, violência. É um modo de preservar a autonomia perante a irredutibilidade do outro. Mas, no caso de Turkey, a irredutibilidade entende-se e as suas consequências são, mais que previsíveis, familiares. Com Bartleby, o narrador será confrontado com a ininteligibilidade, e aquilo que o vai definir será a capacidade de renunciar à violência quando nada lhe resta senão reconhecer a ininteligibilidade. Uma forma também ela anómala de preferir.

 
*

A anomalia é aceitar, uma missão, um apelo, um chamamento, qualquer coisa assim, cujo sentido lhe escapa mas se lhe impõe incontornável: "Yes, Bartleby, stay there behind your screen, thought I; I shall persecute you no more; you are harmless and noiseless as any of these old chairs; in short, I never feel so private as when I know you are here. At last I see it, I feel it; I penetrate to the predestinated purpose of my life. I am content. Others may have loftier parts to enact; but my mission in this world, Bartleby, is to furnish you with office-room for such period as you may see fit to remain."

É menos relevante lembrar que ele permanece fiel a esta decisão, ainda quando abandona o escritório, do que lembrar que com ela sobreviveu bem ao ressentimento, à fraqueza de se sentir fraco, ao medo de ter perdido a coragem, ao ódio e à violência. Se hoje necessariamente ( sim, necessariamente) dizemos "Sim, Bartleby", é por causa de tudo isso.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Os espirituosos não têm espiritualidade nenhuma (nota sobre as mudanças climáticas)

As pessoas morrem, os blogues não. Posto isto, que urgia sublinhar, trato de outro assunto: uma pessoa especialmente estúpida descuidou-se há dias na revelação de que confunde os espirituosos com os espirituais, acepção new age. Por vezes, em certas sitcoms, que agora se identificam pela "temporada" (extraordinário conceito!), aparece uma personagenzita que diz: "Eu considero-me uma pessoa muito espiritual…" Olha-se para o lado e lá está um pauzito de incenso a queimar, uma manta de riscas desbotadas e na parede uma fotografia dum indiano qualquer a pedir paz e fraternidade e sobretudo amor livre, muito livre. As pessoas espirituais, porém, em regra, não têm graça nenhuma. Não são espirituosas. Já os espirituosos par contre têm muita graça: mas nenhuma espiritualidade. Enjoam o incenso, dos indianos só retiveram o tal Gandhi, que de resto abominam ou de quem, quando menos, escarnecem.
Por isso as pessoas tendem a ser espirituais: porque morrem. E por isso os blogues são antes espirituosos que espirituais: porque não morrem.

*

Até aqui, nada de promissor. Agora a pergunta inesperada: o que dizem espirituosos e espirituais das mudanças do clima?


*

A resposta, que aliás suscita de antemão a pergunta, encontra-se na primeira página de A Sereia, romance que Camilo publicou em 1865 — e devo sublinhar: 1865 —, Em Casa da Viúva Moré, Editora. Cito a primeira linha, primeiro parágrafo:

"Estamos no dia 15 de Maio de 1762."

(Houve um tempo em que seria possível um seminário anual sobre esta frase. Mais vasta e mais promissora do que aquela que fala da tal marquesa que sai às cinco horas ou coisa que o valha. Aqui é o dia todo, coisa mais espaçosa, e estamos todos nesse dia, coisa democrática, ao alcance de qualquer um, não apenas de aristocratas que saem de casa sabe-se lá para onde. A ficção democrática é o romance, ou o romanesco, como devem preferir as pessoas honestas, se e quando espirituosas.)
Depois vem a segunda frase, começo do segundo parágrafo: "Naquele tempo, os dias de Maio, no Porto, eram temperados, alegres, perfumados, encantadores." E logo a seguir a frase decisiva: "A primavera, há cem anos, aparecia quando o calendário a dava." É preciso resumir: cem anos antes, os portuenses confiavam na primavera e no calendário, ou só no calendário e gozavam a primavera, não saíam de casa às cinco da tarde com um casaco de reserva precavendo-se contra o frio das sete: "nem o peralta portuense levava escondido na copa do chapéu o cache-nez com que, ao anoitecer, havia de resguardar as orelhas da nortada cortante."
Queixa-se ele do frio, portanto. Arrefecimento nocturno, acentuado arrefecimento nocturno impróprio da estação primaveril e também do Porto. Mas queixa-se mais, ou queixa-se mais longe, confrontando o tempo em que as pessoas confiavam — e os "sábios podiam sem receio responsabilizar-se pela pontualidade das estações" — com o tempo coevo em que algo se desconcertou: "os sistemas das regiões altas". E chega então a parte importante, com sublinhados cá muito meus:

"As pessoas muito espirituais receiam que este desconcerto venha a desfechar em acabamento do mundo; outras, mais racionalistas, pretendem que a desordem das estações proceda de causas que, volvido determinado período, cessem de existir. Ninguém se lembrou ainda de conjecturar que as vaporações constantes das fornalhas e o fluido eléctrico de que o ambiente está saturado possam ter influído na substância dos sólidos e fluidos componentes do maquinismo celeste, alterando-lhes o modo de actuarem sobre a terra. Se algum sábio estivesse de pachorra para demonstrar a profundeza desta minha hipótese original, ficávamos convencidos nós de que a civilização do fumo e a dos arames eléctricos, afinal, acabariam de todo com a primavera. Em compensação, os engenhosos destruidores das nossas alegrias de Maio, haviam de inventar uns fogões cómodos para nosso uso em Julho."

*

Não sei se as pessoas se dão conta do que ali está escrito: nada menos do que a previsão do efeito de estufa ao contrário. A versão original, primeira, pioneira, da teoria do aquecimento global — a explicar o acentuado arrefecimento nocturno durante a primavera do Porto. É isto, são páginas destas que fazem a grandeza dum romancista: o serem muitíssimo do agrado das pessoas muito espirituosas. Já as muito espirituais, fiéis à condição maldita, receiam sempre que o desconcerto, qualquer que seja, desfeche em acabamento dos blogues. Mas este blogue, pelo menos, não acaba.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Longa vida aos espirituosos!*








When I was younger I could remember anything, whether it happened or not.

Mark Twain


*O blogue continua!


Caprichos


— Só não acabo de entender a vantagem de nos manterem mortos. Digamos que foi um capricho, a nossa morte. Aceito bem os caprichos, aliás gosto de caprichos…
— Tu mesmo és particularmente caprichoso.
— Achas? Nunca me disseram isso…! És o primeiro… em que te baseias? e sou caprichoso porquê? a que caprichos te referes? quando foi o último capricho que…
— Pronto, pronto, não és caprichoso. Continua.
— Melhor, assim. Com caprichos e caprichosos, os blogues acabam, e não quero que venham a acusar-me de ter acabado com este. A morte, meu caro, a morte. Porquê manter-nos mortos? Sabes? Atinas com a explicação?
— Sim, atino. Trata-se apenas de ilustrar um preceito. Um vulgar preceito. Enfim, convenhamos, não tão vulgar assim.
— Sim…
— Um blogue é escrito, certo? Ora a escrita está ligada à morte. Aí tens.
— Só isso?!
— Parece-te pouco? É tudo, o cerne, o osso da coisa, o essencial. A morte, meu caro. Podes orgulhar-te de representar o cerne, o osso, o essencial da escrita.
— Mas eu não escrevo nada…!
— Por isso é que este blogue mais dia menos dia acaba mesmo.

terça-feira, 5 de junho de 2007

Longa vida às espirituosas!





— Uma oportunidade desperdiçada. É mesmo o teu género.
— Mas tu dás-me outra, não?
— Sim, claro. É o meu género.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Agora a parte que não é reconfortante

— Continuo a pensar naquilo, não consigo libertar-me daquelas frases, a repetirem-se, a repetirem-se doidas…
— Mas qual é o problema, afinal? Há coisas piores…
— Haverá? Haverá? És capaz de dizer isso assim tranquilamente, como quem fala da chuva ou dalguma eleição municipal? És?!
— Pelos vistos, tudo indica que sim. Qual é ao certo o problema?
— Tenho de explicar? Primeiro, descobrimos que vivemos num blogue. Somos mortos num blogue.
— Sim, já sei, o efeito ou a síndroma Buzz Lightyear. Pensei que tinhas ultrapassado isso…
— E ultrapassei, claramente, sem restos, sem resquícios, sem vestígios, sem traumas…
— Afortunado, muito afortunado.
— Pois, pois, mas agora, sem mais nem menos, descubro que, de uma forma ou de outra, estamos sempre dentro de uma história e que as histórias, e essa é que é a grande merda, pertencem sempre a um género qualquer. Inexoravelmente.
— Não descobriste, aprendeste. Mas pouco, aprendeste pouco. Um "pouco" importante, é certo: aprendeste a necessidade de redescrever o banal "todos temos uma história" num mais acutilante "todos pertencemos a uma história de certo género".
— E isso é pouco? Estou destroçado, porra!...
— Sem razão, porque essa é a parte reconfortante, afinal. A destroçante, como dizes, é que, dada a inexorabilidade do género, que não se define pela nossa historinha, nem se incomoda com ela, nenhum de nós pode escolher o género da história em que está.
— Não vais dizer que é por isso, exactamente por isso que este blogue não acaba?
— Como é que adivinhaste?! Essa é a conclusão lógica, sim.

sábado, 2 de junho de 2007

E agora?!

— Sabias que isto estava escrito em qualquer sítio?
One of the consequences of privileging Oedipus, as Freud did, is that the psychoanalyst then assumes that the patient's real genre is tragedy, and that is real project is knowledge or understanding. It is, though, part of the patient's predicament that he is trapped in a specific genre, that he is unable to move freely among the genres available; his farces, say, are all experienced as tragedies.*
— Sim, sabia. No mesmo sítio onde encontras isto:
With the Oedipus story as a foundation — Oedipus as a kind of early scientific hero —psychoanalysis could be the science of the forbidden, of the unacceptable; and the neurotic could be a failed scientist; with Freud´s rediscovery of Oedipus, in fact, a new version of the good life was being described. In Freud's view — and this is one of his fundamental models for life — the criminal must become a scientist. Crime doesn't pay, but knowledge does.*
— E agora…?
— Tem calma, que se arranja alguma maneira… tem calma.


*Adam Phillips, Terrors and Experts, 1995

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Renunciar ao resto?

I am a rather elderly man. The nature of my avocations for the last thirty years has brought me into more than ordinary contact with what would seem an interesting and somewhat singular set of men, of whom as yet nothing that I know of has ever been written: I mean the law-copyists or scriveners. I have known very many of them, professionally and privately, and if I pleased, could relate divers histories, at which good-natured gentlemen might smile, and sentimental souls might weep. But I waive the biographies of all other scriveners for a few passages in the life of Bartleby, who was a scrivener of the strangest I ever saw or heard of. While of other law-copyists I might write the complete life, of Bartleby nothing of that sort can be done. I believe that no materials exist for a full and satisfactory biography of this man. It is an irreparable loss to literature. Bartleby was one of those beings of whom nothing is ascertainable, except from the original sources, and in his case those are very small. What my own astonished eyes saw of Bartleby, that is all I know of him, except, indeed, one vague report which will appear in the sequel.

Herman Melville, Bartleby (1853)

[Aqui chegados, fim do primeiro parágrafo, ainda vamos a tempo de abandonar o livro?]

quinta-feira, 31 de maio de 2007

Intervalo

Tenho estado ocupado com um assunto. Diz-se assim? "ocupado com um assunto"? Se calhar quando não se quer declarar o mesmo assunto, ocultá-lo de curiosos, de gente que pergunta: "O que estás a fazer?" Ou: "Onde tens andado, que não apareces há que tempos?" (Que bem ali fica a vírgula antes do "que" explicativo… diz-se assim? "explicativo"? Ou será causal, consecutivo…?) Adiante que eu sei qual é o assunto, e até digo qual é o assunto: coligir um pequeno corpo de textos literários sobre o tema do abandono. Mais particularmente: textos onde se contam histórias de gente que abandona o que não consegue interpretar. Gente que desiste de interpretar e vai embora. Gente que vai embora sem desistir de interpretar. E gente que vai embora, que abandona, aquilo mesmo que se dá sem esforço, de graça, oferecido em meio duma estrada pedregosa. (A máquina do mundo de Drummond é isto, como sabem: um sujeito cansado de buscar encolhe os ombros e segue adiante quando máquina do mundo se abre à sua frente deixando ver a causa primeira de todas as coisas.) Não sei, porém, se isto é abandono. Deve poder dizer-se assim, uma atitude de abandono: o sujeito abandona-se, e segue. Há um abandono passivo, e há um abandono activo. Este segundo é deixar, largar de vez, partir, ir embora. O outro, pronominal, abandonar-se, pode ser o oposto: entregar-se, deixar-se ir, render-se, ceder. O enigma que pede decifração depende em boa medida, senão em toda, do sujeito que se abandona; já escapar ao enigma que exige decifração é coisa que exige abandono. Passivo e activo, portanto. Mas isto pouco ajuda à tal colecção de textos sobre o abandono. O único que me ocorre agora é Bartleby. O advogado que conta a história abandona Bartleby no escritório depois de ter decidido que ele lhe estava destinado e que era sua missão na vida acolhê-lo ali, naquele escritório. Por isso, num sentido muito preciso, não abandonar Bartleby implica, para o advogado, abandonar o próprio escritório: e deixá-lo entregue a Bartleby, que nele se abandona até que alguém chega e o expulsa de vez. Quem leu sabe que abandonar o escritório significa, para o advogado, abandonar o esforço de interpretar Bartleby. E vice-versa. Não é possível ocupar o mesmo espaço e renunciar à interpretação. E não é possível interpretar. É preciso ir embora. Largar de vez. Ir embora. Abandonar para pôr termo à compulsão interpretativa. Enfim, isto muito resumido. Só para dizer que tenho andado ocupado com este assunto, pelo que a história do blogue que acabou mas com funcionários do ministério das finanças terá de ficar para outro dia. Isto, claro, se o blogue não acabar antes.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

Amanhã: a mesma história dum blogue que acabou mas com funcionários do ministério das finanças

História dum blogue que acabou

Agora vamos supor um mundo bizarro em que os professores de humanidades estivessem, por qualquer motivo insondável, equiparados aos judeus sob o nazismo. Forças especiais notavelmente implacáveis perseguiam-nos, prendiam-nos, faziam-nos desaparecer dos seus locais habituais e reaparecer algures, em qualquer coisa como campos de concentração, onde eram obrigados a permanecer e a… concentrarem-se: iam ensinar primeiras letras e alguma cultura geral aos futuros mestres do mundo, um bando de macacos sobredotados e já treinados em diversos outros exercícios por especialistas de outras áreas. Acontece, então, que, algures em Lisboa, uma menina de doze anos, filha de um catedrático de Antropologia e de uma doutorada em História Contemporânea, ambos presos e deportados, escapa despercebida e aninha-se, coitadinha, escondida, no sótão; com um pequeno computador portátil consegue aceder à rede sem fios do vizinho, por sinal o mesmo chefe das forças especiais notavelmente implacáveis. Beneficiando desse abuso, a menina começa a escrever um blogue. Os primeiros posts impressionam pela lucidez, pela pertinência, pela relevância dos temas e respectiva organização, pela coerência do pensamento e, sobretudo, pela limpeza ortográfica, tão do agrado dos jornalistas que escrevem "paralizar" onde deviam escrever "paralisar". O blogue começa a ter sucesso; gente do ministério da educação inquieta-se: a autora, sendo menina e nova, só podia provir duma escola privada, dessas que se esmeram. As forças de segurança, pelo seu lado, receiam que tamanha lucidez e tão aplicada capacidade de escrita tarde ou cedo, mas talvez cedo, se mobilizem para a denúncia da situação a um tempo misteriosa e iníqua dos professores da área de humanidades. Começam as buscas. Informáticos particularmente dotados — os mesmos que treinaram os referidos macacos na manipulação de computadores — tentam rastrear a origem do blogue e do respectivo correio electrónico. Depressa chegam, por meios lá deles, ao endereço do chefe das forças especiais notavelmente implacáveis. O escândalo rebenta! Seria ele a fazer-se passar por uma menina de doze anos? O guarda-fatos não exibia roupa feminina, mas ele podia escrever nu: seria até mais perverso. Por outro lado, a lealdade do oficial parecia comprovada, acima de suspeita razoável… O certo é que cortada a ligação à Internet, o blogue pára. Como se tivesse sido bloqueado. Blogue interrompido, estão a ver? Pela cidade desata a correr a pergunta: "É verdade que o blogue acabou?" (O blogue da menina era já familiarmente conhecido como "o blogue".) A angústia cresce. Não sendo possível — nem legítimo — prender o chefe das forças especiais notavelmente implacáveis, o governo decide restabelecer a ligação à Internet em casa do oficial, mas restringindo-lhe o uso do computador, a que apenas podia aceder sob vigilância apertada, que ele próprio, aliás, já tinha solicitado por ocasião das primeiras suspeitas (a fim de provar sem dúvida a sua inocência). O blogue não tardou a recomeçar. E pela cidade a correr a pergunta: "Então afinal o blogue ainda não acabou?" O problema cresce. Os informáticos particularmente dotados coçam a cabeça. Tudo parece encaminhar-se para o impasse. Até que a menina, como seria de esperar, comete um erro. Um pequeno erro, um deslize sem importância, nem sequer um crime, ou nem sequer um crime grave. Aborrecida, incapaz de extrair do blogue toda a diversão e todo o ânimo que a sua difícil situação requeria, começa a sacar músicas e filmes da Internet. Usando a rede do vizinho, claro. O chefe das forças especiais notavelmente implacáveis cedo se vê confrontando com uma conta descomunal: ultrapassara largamente o máximo de tráfego de download permitido. Ora, não havendo qualquer filme no computador dele, a que acedia, como se sabe, debaixo de rigorosa vigilância, ficava provado que a ligação era insegura. Alguém se servia da rede sem fios para disseminar a inquietação e inspirar a piedade dos cidadãos. De novo chamados, os informáticos particularmente dotados fazem o que, segundo alguns, deviam ter começado por fazer: encriptam a rede com uma chave virtualmente impenetrável. A menina de doze anos, no seu escuro sótão, perde o acesso. Sem conhecimentos informáticos, sem especial imaginação, nunca mais poderá publicar posts, nem sequer a dizer que nunca mais poderá publicar posts. A sua situação é inteiramente desesperada, mas ninguém sabe. O blogue pára, acaba, suspenso brutalmente, mas ninguém repara. Nunca mais ninguém se lembrará dele, e a menina mais dia menos dia terá de arranjar outro meio de.

Nunca seremos cotas*!

— Lá andam outra vez a malhar na escola…
— São os cotas, meu, são os cotas. Lê as indignações a propósito desta coisa bizarra de não avaliar erros ortográficos não sei em que ano: estão cheias de advérbios, "hoje", "agora", "antes".
— Bem observado, são os cotas, meu: "no meu tempo levava nas orelhas se trocava um s por um z, agora os meninos brincam e têm todos os direitos"… Aproveitam qualquer merdice para anunciar que, quando eles morrerem, vai ficar tudo perdido e estragado e arruinado e o mundo entregue à canalha infantil e adolescente.
— São os cotas, meu, são os cotas. Invejosos como o raio, acham-se muito sabidos e são afinal broncos ao ponto de repetirem o lugar-comum mais velho do mundo…
— Isso, essa coisa de "no meu tempo…." por oposição a "agora". "No meu tempo" é que se aprendia, "hoje" ninguém sabe nada… isso data de quando? da Idade Média? Ou já havia cotas em Roma?
— Os cotas, meu, os cotas estão por todo o lado e em todas as épocas… Deve ter havido muito pterodáctilo cota. E os de hoje, então… Quantos deles sabem ao certo o que é ortografia? quantos não confundem grafia com ortografia? quantos acham que a língua morre com um erro de ortografia? quantos não se embaraçam na colocação dos pronomes? quantos não trocam alegremente um conjuntivo por um indicativo…?
— São cotas, meu, são cotas, já lhes falha a cabecinha…
— Também vamos ficar assim quando chegarmos à idade deles?
— 'Tás parvo! nós nunca chegaremos à idade deles, porque nós não temos idade, e quando lá chegarmos, já não vamos saber que tivemos um dia a idade que temos hoje, e por aí fora. Nunca seremos cotas!
— 'pera, meu, 'pera aí! Não será quotas?

*Este blogue ainda não acabou.

Longa vida aos espirituosos!

*


War is God's way of teaching Americans geography.

terça-feira, 29 de maio de 2007

Este blogue ainda não acabou

— Nota que a afirmação do título pode ser enganosa, ou contingente, derivar por exemplo de alguma gralha… quem te garante que o ponto de interrogação não caiu?
— Sim, está-se a ver… o ponto de interrogação cansava-se de aparecer a repetir a mesma pergunta… sim, porque já foi feita, como sabes. Isto aliás devia chamar-se a náusea, ou a náusea não acabou, Deus nos livre…
—A pergunta deve ser repetida. Aliás, é sempre repetida. De cada vez que visitas um blogue, afinal vais verificar se acabou: e chegas lá e perguntas, sem te dares conta, "este blogue não acabou?"
— Pensei que ias dizer que, de cada vez, deixo subentendida a afirmação "olha! este blogue não acabou".
— Gaita! mas não vês que é o mesmo? Um blogue está sempre à beira do fim, do termo, ou melhor dito, da interrupção. Pode acabar a qualquer momento, porque não há nenhuma regra inerente que lhe imponha um fim.
— E por outro lado nunca acaba, não é mesmo? Quem quer que lhe ponha fim, abandona-o…
— Agora és tu que repetes
— E devo repetir: quem quer que lhe ponha fim, abandona-o constituindo-o totalidade separada, livre, autónoma, o que quiseres. Destinada ao esquecimento, muito provavelmente, mas fechada, completada, organizada para que possa ser tomada como um todo. É uma nova possibilidade, aliás uma imensa possibilidade.
— Mesmo que o fim tenha sido acidental…?
— Sobretudo nesse caso.
— Então estamos de acordo! É virtualmente impossível acabar com um blogue.
— Eu diria estruturalmente impossível.

domingo, 27 de maio de 2007

Se este blogue não acabou, talvez nos tenha abandonado

— Acho que percebo a tua objecção.
— Não é objecção, é uma visão, digamos, alternativa. Aceito que o blogue é interminável, que não acaba, ou pode não acabar, ou não acaba por si mesmo. Acaba ou pára por acidente ou por abandono.
— Sim, isso também eu aceito. Mas dizias…
— Dizia que assim regressam à cena as pessoas… a qualquer momento aquele que o abandonou regressa, acarinha-o, e fica mais uns tempos por ali… quem é "aquele", senão uma pessoa?
— Mas como querias que fosse? os blogues são escritos por pessoas, ou não?
— Olha quem fala…
— Em regra, homem, em regra. Falo de situações regulares, blogues de vivos, de gente viva…
— Aí tens a distinção, vivos ou mortos, é muito diferente. Vivos são pessoas, e aquela frase sugere que as pessoas se condoem dos blogues abandonados e regressam para os reconfortar. Quando é precisamente o contrário que se passa.
— O contrário!? Precisamente o contrário!? São os blogues que regressam para reconfortar as pessoas que os abandonaram? Isso não tem sentido!
— Claro que não, o "precisamente" era expletivo. Se trazes pessoas à cena do blogue, então é mais urgente dizer que são os blogues que as reconfortam. Ou elas esperam do blogue que as reconfortem. Melhor explicado: as pessoas "ficam por ali", não abandonam o blogue ou regressam depois de abandono provisório, porque têm medo de que seja o blogue a abandoná-las. E para sempre, sem regresso viável.
— Quer dizer que, metendo em cena as pessoas, não há diferença entre abandonar o blogue e ser abandonado por ele?
— Alta perspicácia, meu caro.

sábado, 26 de maio de 2007

Mas este blogue não acabou?

Suponhamos que não. Suponhamos que este blogue não acabou. Este, pelo menos, não acabou. Uma suposição é uma suposição, quer dizer, um princípio de construção. (No restaurante, ou na televisão, diriam: uma suposição vale o que vale, procedimento de tautologia despectiva, por analogia com as sondagens, as declarações de um ministro ou os vaticínios da astrologia; persistem entretanto várias coisas, aliás muitas, que nem chegam a valer o que valem). Suponhamos, então. E a sério, se não acabou, sejamos sérios.

*

Une chose réussie est une transformation d'une chose manqué.

Donc une chose manquée n'est manquée que par abandon.

Paul Valéry, Tel Quel.


*

Ser sério, então (suponhamos), leva-nos a esta construção: nenhum blogue acaba, ou nunca se pode saber quando acabou. Apenas se abandona. Ou apenas se pode saber que foi abandonado. Mas nem sequer se pode saber com plena certeza que estamos a abandoná-lo: não, pelo menos, no momento do abandono, se se dá num momento.

Vá lá, sejamos sérios: a pergunta "mas este blogue não acabou?" tem de ser rescrita assim: "mas não é legítima a suposição de que este blogue foi abandonado?" (Resposta correcta esperada: raramente.)

(Aliás, quem poderia abandoná-lo?)

*

Un poème n'est jamais achevé — c'est toujours un accident que le termine, c'est-a-dire qui le donne au public.


Paul Valéry, Tel Quel.

Vá lá, sejamos sérios: a comparação não presta. O poema é dado ao público quando acabado, ou porque considerado acabado, ou porque abandonado pelo poeta. O poeta abandona o poema: fórmula precisa para descrever a publicação. O blogue abandonado, ao invés, é aquele em que ninguém publica, em que alguém cessa a publicação; abandonar o blogue significa deixar de publicar, renunciar a publicar, desistir de publicar.

E se o blogue continuasse sozinho? Um blogue é interminável, melhor dizendo, invulnerável ao abandono; a qualquer momento aquele que o abandonou regressa, acarinha-o, e fica mais uns tempos por ali.

Então, a pergunta "mas este blogue não acabou?" tem de ser reconsiderada como pergunta sem sentido. Ou impertinente. Sejamos sérios, carago.

sexta-feira, 25 de maio de 2007

Este blogue acabou?

— Um blogue! Um miserável blogue! É nisso que estamos?
— E há muito tempo, meu caro, há muito tempo. Também me custou a acreditar, mas foi isso que ouvi. Distintamente.
— E ainda por cima um blogue que acabou?!
— Essa parte já não é certa… Ou está sujeita a interrogação crítica, como diriam os outros. Se tivesse acabado, estávamos agora aqui? Poderíamos conversar um com o outro? Sei de casos, é certo, de personagens de romance que sobreviveram aos romances, e até de gente que conseguiu escapar de filmes, de peças de teatro, de pantomimas, e ganhar vida autónoma. Mas de blogues, não, não tenho notícia de autores ou personagens de blogue que existam fora do blogue.
— Porque não lês blogues. Olha que eu leio e encontro por lá quem explique onde esteve quando esteve fora… Há um fora, portanto.
— E depois? Que consolo tiras daí? Nem interessa se isto acabou ou não. Eu é que me sinto mesmo como o Buzz Lightyear quando descobriu que era apenas um brinquedo e não um ranger do espaço.
— Ora, ora… tu não podes saber como se sentiu o Buzz Lightyear quando descobriu que era um brinquedo. Aliás… se era um brinquedo, como é que sentiu fosse o que fosse?
— Achas que os brinquedos não têm sentimentos? Achas acaso que são como as personagens típicas, transparentes, com experiência pública mas nenhuma experiência singular, individual, pessoal? Como se fossem gregos, com qualidades genéricas, sem interioridade ou densidade psicológica…
— Os brinquedos têm interioridade e densidade psicológica?
— Aí tens! Fazes-me uma pergunta dessas e ainda acreditas que o blogue acabou?

sábado, 12 de maio de 2007

Longa vida aos espirituosos*?


Being a woman is a terribly difficult trade, since it consists principally of dealing with men.


Joseph Conrad


*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

segunda-feira, 7 de maio de 2007

Longa vida aos espirituosos*!


It is the child who is too fearful to make a nuisance of himself that is the child we should be really worried about.

Adam Phillips



*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

terça-feira, 1 de maio de 2007

Longa vida aos espirituosos*?


Não gosto da direita, porque ela é de direita, e não gosto da esquerda porque ela é de direita.

Millôr Fernandes




*Ordinariamente, chamam-se, à francesaespirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

terça-feira, 24 de abril de 2007

Longa vida aos espirituosos*!


No tener vicios no añade nada a la virtud.

Antonio Machado




*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Longa vida aos espirituosos*!


I am not young enough to know everything.

Oscar Wilde




*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

O enguiço

– Ai D. Augusta, que anjo que é!

Ela ria; chamava-me enguiço! Eu sorria, sem me escandalizar. «Enguiço» era com efeito o nome que me davam na casa – por eu ser magro, entrar sempre as portas com o pé direito, tremer de ratos, ter à cabeceira da cama uma litografia de Nossa Senhora das Dores que pertencera à mamã, e corcovar. Infelizmente corcovo – do muito que verguei o espinhaço, na Universidade, recuando como uma pega assustada diante dos senhores lentes; na repartição, dobrando a fronte ao pó perante os meus directores-gerais. Esta atitude de resto convém ao bacharel; ela mantém a disciplina num Estado bem organizado; e a mim garantia-me a tranquilidade dos domingos, o uso de alguma roupa branca, e vinte mil réis mensais.

Não posso negar, porém, que nesse tempo eu era ambicioso – como o reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lépido Couceiro. Não que me revolvesse o peito o apetite heróico de dirigir, do alto de um trono, vastos rebanhos humanos; não que a minha louca alma jamais aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia, seguida de um correio choutando; – mas pungia-me o desejo de poder jantar no Hotel Central com champanhe, apertar a mão mimosa de viscondessas, e, pelo menos duas vezes por semana, adormecer, num êxtase mudo, sobre o seio fresco de Vénus. Oh! moços que vos dirigíeis vivamente a S. Carlos, atabafados em paletós caros onde alvejava a gravata de soirée! Oh! tipóias, apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente para os touros – quantas vezes me fizestes suspirar! Porque a certeza de que os meus vinte mil réis por mês e o meu jeito encolhido de enguiço, me excluíam para sempre dessas alegrias sociais, vinha-me então ferir o peito – como uma frecha que se crava num tronco, e fica muito tempo vibrando!


P.e António Vieira, Sermão da Circunscrição da Ironia Queirosiana, parte I.

terça-feira, 17 de abril de 2007

O brandy e o telescópio

— Aqui tens tu, Zé Fernandes (começou Jacinto, encostado à janela do mirante), a teoria que me governa, bem comprovada. Com estes olhos que recebemos da Madre natureza, lestos e sãos, nós podemos apenas distinguir além, através da Avenida, naquela loja, uma vidraça alumiada. Mais nada! Se eu porém aos meus olhos juntar os dois vidros simples dum binóculo de corridas, percebo, pôr trás da vidraça, presuntos, queijos, boiões de geleia e caixas de ameixa seca. Concluo portanto que é uma mercearia. Obtive uma noção: tenho sobre ti, que com os olhos desarmados vês só o luzir da vidraça, uma vantagem positiva. Se agora, em vez destes vidros simples, eu usasse os do meu telescópio, de composição mais científica, poderia avistar além, no planeta Marte, os mares, as neves, os canais, o recorte dos golfos, toda a geografia dum astro que circula a milhares de léguas dos Campos Elísios. É outra noção, e tremenda! Tens aqui pois o olho primitivo, o da Natureza, elevado pela Civilização à sua máxima potência de visão. E desde já, pelo lado do olho portanto, eu, civilizado, sou mais feliz que o incivilizado, porque descubro realidades do Universo que ele não suspeita e de que está privado. Aplica esta prova a todos os órgãos e compreenderás o meu princípio. Enquanto à inteligência, e à felicidade que dela se tira pela incansável acumulação das noções, só te peço que compares Renan e o Grilo... Claro é portanto que nos devemos cercar da Civilização na máximas proporções para gozar nas máximas proporções a vantagem de viver. Agora concordas, Zé Fernandes?
Não me parecia irrecusavelmente certo que Renan fosse mais feliz que o Grilo; nem eu percebia que vantagem espiritual ou temporal se colha em distinguir através do espaço manchas num astro, ou através da Avenida dos Campos Elísios presuntos numa vidraça. Mas concordei, porque sou bom, e nunca desalojarei um espírito do conceito onde ele encontra segurança, disciplina e motivo de energia. Desabotoei o colete, e lançando um gesto para o lado do café e das luzes:
— Vamos então beber, nas máximas proporções, brandy and soda, com gelo?

Luís António Verney, Contribuição para a Crítica de "A Cidade e as Serras" de Eça de Queirós, p. 23.

segunda-feira, 16 de abril de 2007

Longa vida aos espirituosos*!


Un homme seul est toujours en mauvaise compagnie.

Paul Valéry



*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

terça-feira, 10 de abril de 2007

Lição do galo

— São muito azedos, os teus espirituosos…
— Meus? Que raio de ideia. Encontro-os sem os procurar, colijo-os sem lhes pedir licença, estropio, trunco, altero… são tudo menos meus, se no possessivo queres insinuar algum sinal de respeito ou reverência da minha parte.
— Por acaso não queria nada de semelhante. Assim mesmo é que me parecem mais teus. Mas disse “teus” porque és tu que os papagueias, só isso. E que são azedos, são.
— Querias espirituosos alegres?
— Não, nem tanto, mas alguma boa disposição, algum humor leve, sei lá…
— Ora, ora. Para que queres tu isso? O galo canta até na manhã em que vai acabar na caçarola.
— Hmm, cheira-me que isso não é teu…

Longa vida aos espirituosos*!






Happiness is the perpetual possession of being well deceived.


Jonathan Swift



*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

domingo, 1 de abril de 2007

Longa vida aos espirituosos*!



What ought to be done to the man who invented the celebrating of anniversaries? Mere killing would be too light.


Mark Twain



*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

Os malefícios da proibição

Gostas de citar, meu lindo? (Que raio de maneira de começar. Haverá propósito?) Há tempos, deixaste a meio um texto sobre o tabaco, a proibição de fumar, os supostos direitos de quem não fuma, a diferença entre o tabaco e a cocaína (ou a heroína), que depois nem era relevante, e nem sei que mais. Sem punch line, o texto ficou paralisado; preterido. Mas gostas de citar, meu lindo? (Que coisa, isto volta: quem é este lindo a quem chamo meu?) O ponto, se não erro, era este: indesmentíveis que sejam os malefícios do tabaco, mais nefastos que indesmentíveis são os malefícios da proibição. É um ponto difícil de argumentar. Quem defenda o tabaco, e fume, defende-se sem dificuldade de maior. Quem não fume, mas suponha o tabaco um mal menor ou ainda um benefício, dirá isso mesmo. Já quem entenda que o tabaco empesta o ar terá maior dificuldade em repudiar a proibição enquanto proibição. O bom senso diz que ao Estado compete proibir o nefasto. Como podemos repudiar que se fume em locais públicos e ao mesmo tempo que se proíba o tabaco em locais públicos? Enfim, gostas de citar, meu lindo? Aqui vai o exemplo que ilustra a necessidade da distinção difícil: «Foi preciso que o Parlamento levasse um boa bofetada na cara, mas mais vale tarde do que nunca. Que o dr. Correia de Campos, do alto da sua autoridade, obrigue o proprietário de um restaurante a impedir a sua clientela de fumar não impressionou os senhores deputados. Que o Estado resolva impor uma regra geral que exclui a hipótese de os fumadores frequentarem restaurantes de fumadores também não colidiu com a sensibilidade democrática da Assembleia. Agora que o grupo parlamentar socialista interfira na comodidade e nos vícios de cada um é verdadeiramente grave. As leis, como toda a gente sabe, são para a canalha. A canalha que as cumpra e cale o bico. Os senhores deputados, pelo contrário, têm direitos. Por exemplo: no avião de Sócrates, que os contribuintes pagam, fuma quem quer e o ar até se torna ‘quase irrespirável’. Assim é que é; e assim é que deve ser em S. Bento.» Acutilante, preciso: e vindo dum defensor do tabaco (Vasco Pulido Valente), claro, fumador, claro, mais ajuda, e até foi hoje (Público, lá para a última página, sublinhados meus). Gostas de citar, meu lindo?

sábado, 31 de março de 2007

Longa vida aos espirituosos*!


Television is where you watch people in your living room that you would not want near your house.


Groucho Marx

*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

sexta-feira, 30 de março de 2007

Televisão e tragédia

— Anda para lá meio mundo a debater, e outro meio a não querer debater, aquele concurso ou lá o que é, em que ganhou o Salazar.
— Ouvi falar. Chegou aqui ontem um desgraçado que contou mais ou menos tudo. Ouvi-o a dizer ao Aristides: Foste um herói, mas não fizeste nada por Portugal. Claro, não? Só é grande português quem faz alguma coisa por Portugal. O nacionalismo é sempre estreito…
— Mas está certo, homem. Repara bem: o português é definido por.. Portugal. O país dá-lhe um traço de identidade, coisa enorme, património, riqueza inestimável. E ele tem de retribuir: será grande ou pequeno conforme a retribuição.
— Enfastiam-me, essas tuas subtilezas parvas. Não se consegue manter nenhuma conversa de jeito. Chiça! Penico!
— Chapéu de coco, sapatos de ténis, colete de fantasia, ó écloga, Zé Pinto Basto, sua cadela está mais magra do que um cão.
— Isso pelo menos não tem nada de subtil…
— Nada. Mas tem calma, televisão é televisão, tem um efeito, como direi, teatral, catártico, higiénico mesmo, arrisco mais: educativo.
— Não me repitas a treta de que ias ler um livro para o lado quando a ligavam…
— Não, nada disso. Tenho outra definição da televisão: é a possibilidade de estarmos na nossa sala, tranquilos, protegidos, a ver pessoas que não gostaríamos mesmo nada de ter na vizinhança.
— Isso é mais ou menos o mesmo que dizer que vale para nós o que a tragédia representava para os gregos.
— Qual mais ou menos! é exactamente o mesmo. Ou seria... se não fosse só uma piada.

quinta-feira, 29 de março de 2007

Outros planos

— Olha só isto que encontrei agora mesmo…
— O quê? mostra, mostra…
— É uma frase, uma frase do John Lennon: life is what happens to you while you are busy making other plans. Que me dizes?
—Digo que só pode ser plágio, o tipo pilhou em qualquer lado.
— Não estás a ser preconceituoso? Só porque é uma boa frase não pode ser dele?
— Mas não é uma boa frase, homem! “Outros planos”? Que "outros"? Outros em relação a quê? O “outros” está a mais.
— Em português estaria, mas o inglês…
— Ora, o inglês. Qual quê! só pode ser plágio. Outros planos… pfff.

quarta-feira, 28 de março de 2007

Longa vida aos espirituosos*!


Almost all physicians have their favourite diseases.

Henry Fielding


*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

sexta-feira, 23 de março de 2007

Desconchavando

— Hei, homem, por onde tens andado…
— … que tão farta lã tens criado!
— Cheio de espírito, o espírito!
— Reconheço que sim. O crescimento da sabedoria mede-se precisamente pela diminuição do mau humor.
— Ora, a saúde é um estado precário que não augura nada de bom.
— Concordo. Aliás, ninguém sabe o que Colombo teria descoberto se a América não estivesse no caminho.
— Nem mais. Um coxo apesar de tudo caminha.
— E até um olho de vidro vê a própria cegueira.
— Que quer isso dizer?
— Que na luta de ideias são sempre as pessoas que morrem.
— Ah, vejo. Numa avalanche nenhum floco de neve se sente responsável.
— Verdade. Mas a primeira condição para a imortalidade é a morte.
— Tal como a principal causa do divórcio é o casamento.
— Mas não concordo que se use a morte nem como castigo nem como recompensa.
— Então não perguntes a Deus o caminho a seguir para a felicidade, ele indica sempre o mais difícil.
— E se um canibal comer de garfo isso é um progresso?
— Vamos parar com isto?
— Melhor, sim. Está tudo nas mãos do homem, por isso é melhor lavá-las com frequência.

quinta-feira, 15 de março de 2007

Longa vida aos espirituosos*!








Je ne dispute donc pas que la médicine ne soit utile à quelques hommes, mais je dis qu'elle est funeste au genre humain.

Jean-Jacques Rousseau

*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

terça-feira, 13 de março de 2007

Afinal, afinal...

... a loja não fechou (advirto porém o dono a tomar cautela e a abster-se de mencionar a morte no contexto). Depreendo que foi considerada e adoptada a solução que apresentei. Foi? Deve ter sido. Foi, seguramente. Só pode. Ou então a coincidência é muitíssima e fortuita. Possível, sim, mas tão extraordinária, que apenas a julgo comparável à invenção do cálculo infinitesimal por Leibniz e Newton, ao mesmo tempo e independentemente um do outro, e à descoberta da selecção natural, por Darwin e Wallace, idem. Caramba, que estímulo! que grandeza!

sexta-feira, 9 de março de 2007

A morte foi no ano passado

— Já viste? Alguém deu pela passagem do primeiro aniversário da tua morte.
— Ah, o Sr. Mourão… Curioso, ele que foi o último a chegar...
Mas não é mais ou menos sempre assim?
— Assim como?
— Então... o que chega depois, o que vem demasiado tarde, o que se afirma pela consciência dos predecessores sem se lhes sujeitar, e demais com mortos à mistura, esse, e só esse, pode perceber e dizer que tu eras a alma daquilo.
— Ah... Eu era a alma daquilo... Caramba, rapaz, e se eu era a alma daquilo. Mas se alma era, alma continuo, não é? Nem sequer penada: de nada, alma de nada, ou da eternidade do vazio, ou da voluptuosidade do nada, do lado de cá do mistério, ou do...
— Eh lá, chega! Estás a deprimir-me.

quinta-feira, 8 de março de 2007

Plágio


Laurence Sterne, que no grande Tristram Shandy copia outros autores extensiva e sub-repticiamente, também enviou à amante cópias das cartas que escrevera à mulher anos antes. A coisa é meio grosseira, mas será plágio? Não causou nenhum dano e até pode ter criado alguma mais-valia: Sterne pode ter pensado que as cartas que escreveu à mulher continham as suas mais sentidas e eloquentes declarações de amor, que não poderia melhorá-las e que, por isso, se ainda assim tivesse escrito outras para a amante, seriam inferiores e não conseguiriam exprimir a sua paixão. É claro que a mulher e a amante haveriam de ficar furiosas se tivessem descoberto. Talvez considerassem Sterne preguiçoso, falso, oportunista. Em qualquer caso, o que as agastaria não seria a cópia mas o que na cópia se revelava do carácter de Sterne. Não seria o plágio de si mesmo a causar algum prejuízo: seria a descoberta do plágio.

terça-feira, 6 de março de 2007

A solução

Tristeza, esta coisa de lojas que fecham. Será por falta de tempo ou motivo correlato? Pessoas que escrevem muito e em muitos sítios arriscam a seriedade e a compostura, a qualidade e a coerência. Até a sanidade. Além de outras coisas que não se devem mencionar em público. Demais, este tipo de escrita é sine pecunia. Mas fechar a loja? Será inexorável? Já houve outro protesto.
Pode ser, porém, problema de pessoas individuais, a que eventualmente escapem as colectivas. Parece que Rembrandt assinava quadros dos discípulos: não porque quisesse apropriar-se deles, mas para certificar que estavam a altura dele, o mestre. Daí que a solução não seja o blogue colectivo, mas a pessoa colectiva. Em vez de mil blogues a imitar Pedro Mexia — é um exemplo —, mil bloguistas a escrever para um único blogue — o de Pedro Mexia, para continuar o exemplo —, com todos os posts assinados por Pedro Mexia — é o mesmo exemplo, sim —, que assim certificava que tudo aquilo teria a “qualidade Mexia”, embora não tivesse sido escrito por ele, Mexia (mero exemplo).
Rarefaziam-se os blogues, extirpavam-se as pretensões de originalidade e expressividade, dava-se sério golpe nessa pretensão de autoria, e enfim deixava-se escrever quem quer escrever — o mais importante.
Voilá! Eis a solução. Tem alcance universal. E inclui o plágio. Ou melhor: o plágio é uma variante desta solução.

Plagiemos!

— Lançamos a campanha ou não? Começamos hoje?
— Não sei, tenho ainda algumas dúvidas. Preciso de pensar melhor antes de entrar nisso.
— Ora, deixa de ser timorato. É preciso audácia, muita audácia, a sorte protege os audazes, etc. Aliás, o que é que te pode acontecer? Nada absolutamente! Nada mais incomensurável do que o desdém dos mortos, como sabes…
— Eu sei, mas… uma campanha para reabilitar o plágio?!
— É uma grande ideia! Uma ideia enorme… sobretudo porque prática. Mas nada de reabilitar: apenas praticar. Sem propósito de espécie nenhuma. Prática. De preferência cega. Nada de teorias.
— Mas é impossível voltar à época barroca…
— Vês? Percebes porque és timorato? Lá estás tu com teorias e análises e analogias e conexões e o caraças. Nada disso. Prática, mera prática. Levar por diante o plágio. Plagiemos!
— Plagiemos?!
— Sim, é essa a campanha, homem. Plagiemos! Vamos todos plagiar. Cada romancista, cada poeta, cada jornalista, cada miserável bloguista deve plagiar, deve abster-se de escrever coisa sua e passar a publicar exclusivamente coisas pilhadas a outros. Aí é que se vai ver quem presta, quem tem coisas para dizer, quem sabe e quem não sabe… E que higiene, meus Deus! que limpeza! que aragem fresca no impresso!
— Como na época barroca, portanto.
— Como queiras. Se queres começar já a plagiar é contigo. Aliás, apoio, aliás, aplaudo. Plagiemos. Todos. Aí é que se vai ver quem presta, quem tem coisas para dizer, quem sabe e quem não sabe…
— Começo a ver os contornos da ideia, sim. Hmm… plagiemos, sim, plagiemos… Percebo: nem teorias nem análises nem analogias nem conexões nem o caraças. Nada disso.
— Prática, mera prática. Levar por diante o plágio. Mas nada de reabilitar, ouviste? Nada de propósitos altos ou baixos, graves ou cómicos.
— Como queiras, então. Se queres começar já a plagiar é contigo. E comigo. Aliás, apoio, aliás, aplaudo. Plagiemos. Todos.

domingo, 4 de março de 2007

Paróquias & Livros

Paróquia ou paroquiato. Ou paródia. Também serve para designar grupo de pessoas com interesses comuns. Comunidade. Nada a fazer. São erradicáveis. Segregam sentido de homogeneidade interior e de competição com o exterior, qualquer deles abominável. Por exemplo: certa professora brasileira que acabo de ler (Deus me livre de lhe pôr aqui o nome!), comentando o relevo do Quijote na literatura espanhola descai-se — ou não… — e acrescenta que nada de semelhante existe em língua portuguesa. Dados os encómios que lhe merecem o livro de Cervantes, o acrescento redunda no sublinhado dum traço de menoridade. Ainda há dias li algures, não sei já onde, que Eça não seria possível sem Flaubert… Voilá! Será defeito de Flaubert? Parece que não (mas devia ser!): antes menoridade do tal Eça. Mas dessa menoridade está ele livre. Nenhum autor que se preze deixou de copiar o que entendeu copiável. Nenhum. É preciso copiar. É criativo copiar. E critica-se?! Paróquia, em suma. Aliás escola de meninos invejosos. Reparte-se a literatura em paróquias chamadas nacionalidades, depois julga-se que a repartição corresponde a um fenómeno de evolução natural, assim como a emergência do córtex cerebral ou lá o que é, e depois ficam as mais aptas aquelas nacionalidades que criaram coisas que as outras não alcançam. A conclusão indisfarçada não é estarmos mais ricos por termos qualquer coisa como o Quijote, é ficarmos mais pobres por pensarmos que são os espanhóis que a têm. Paróquia ou paroquiato, cum mil raios.

*

E depois é melhor não publicarem mais livros. Chega. Já só causam desgostos e irritações. Ontem abri um livro que agora saiu. Li no começo dum capítulo: “Ando há três anos (já lhes perdi a conta)…” Chiça! Quem escreveu o que está dentro do parêntesis? A usar assim a primeira pessoa, será decerto a pessoa autora, que assina na capa. Então quem pôs o numeral “três”? Quem contou os anos, guardou bem guardada a conta e a fez imprimir? Ainda a pessoa autora e pela mesma razão? Decerto. Então a pessoa autora não sabe o que significa “perder a conta”, ou antes quis fazer-se interessante, engraçada, solta, arriscar incoerência… E não há outra pessoa chamada editor que a mande dar banho ao cão enquanto lhe depura a prosa? Não há? Se não há, é melhor não publicarem mais livros.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Longa vida aos espirituosos*!



Nothing so needs reforming as other people's habits.


Mark Twain



*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

Impossível!

— Como ontem não estivemos cá…
— Já te disse que não há nenhum ontem! Não há nenhum cá. Nem sequer nenhum nós. Somos mera energia universal materializada…
— Desmaterializada, queres tu dizer…
— Não! O que eu quero dizer é que tanto faz, materializada ou desmaterializada, porque não há nenhum ontem, não há nenhum amanhã, nenhum cá, nenhum nós…
— Gaita! Tornou-se mesmo impossível falar contigo!

domingo, 25 de fevereiro de 2007

Segunda sessão

— Então, falo de quê?
— Do que quiseres. Mas é melhor não nos tratarmos por tu. Ganha-se intimidade, perde-se distância…
— Não é o mesmo?
— Não, as formas de tratamento têm…
— Não é isso, homem. Ganhar intimidade e perder distância não é o mesmo?
— Penico! assim não se progride, se te pões a questionar tudo!
— Pensei que era essa a ideia desta coisa de encenar a psicanálise. Ou não?
— Sei lá! tu é que tens pena de não ter feito psicanálise, eu só quero ajudar…
— Mas que sentido é que isso faz agora? O que se perdeu está para sempre perdido. O que eu queria, quando disse que tenho pena, era ter tido a oportunidade de chegar ao melhor modo de vida para mim através do meu próprio juízo e da minha própria decisão.
— Não querias mais nada! Autonomia, não?
— Precisamente! Autonomia e liberdade. Em certas condições, a psicanálise é a única via para isso, desperdiçadas ou recusadas todas as outras. E nem te estou a ver à altura do encargo, se queres que te diga. Nem sequer como ficção ou ensaio ou lá o que é.
— Ora… Qual é a dificuldade? É só ficar para aqui sentado, finjo ouvir tudo o que tu dizes com muita atenção, faço uma pergunta ou outra, ao fim dos quarenta e cinco minutos “upa! upa! que acabou a hora!”, e pronto. A bem dizer o trabalho principal é mesmo teu…
— Pois, se calhar tens razão. Mas olha, isto não devia ser confidencial?
— Claro, inteiramente, absolutamente confidencial.
— Então e as vinte ou trinta pessoas que para aqui espreitam diariamente?
— É verdade, não tinha pensado nisso. Vou fechar a porta.

sábado, 24 de fevereiro de 2007

Depois da escola, a escola

Um sujeito abeira-se dum livro sobre educação* e logo lê nas primeiras linhas:

“Cada vez mais se exige da escola que compense o fracasso das outras instituições sociais. Pela primeira vez na história, esperamos que dê instrução a todos, e não apenas àqueles cujos pais já tinham sido eles próprios instruídos. E espera-se isso apesar de uma larga massa de crianças ser mantida na extrema pobreza, e apesar de as crianças serem rodeadas, em idades muito precoces, por uma cultura popular ardorosamente anti-intelectual.”

Valia a pena acrescentar que, no geral, as opiniões, discursos, ideias que correm pela televisão e pelos jornais, em vagas mais ou menos periódicas, integram perfeitamente, completando-a, essa cultura popular anti-intelectual. Pelo menos enquanto ignoram, como tendem a ignorar ou a escamotear, os limites impostos à escola pelas próprias exigências que lhe fazem. Dir-se-ia que a escola não cumpre porque se degradou, sozinha e tendo a possibilidade de não se degradar. Como se um grupo de malfeitores perversos tivesse tomado conta dela e a desviasse do seu natural, legítimo e original rumo. Daí o sempre assegurado sucesso dos que polemizam contra caricaturas (o “eduquês”, os manuais medíocres, etc.).

*

O mesmo sujeito, entretanto, vira a página e encontra a formulação dos princípios que as escolas, os governantes e os educadores deveriam adoptar. Logo assim:

“Esses princípios centram-se no interesse das crianças e não nos interesses mais vastos da sociedade, das empresas, das igrejas ou, já agora, dos pais. As crianças têm o direito de conhecer um espectro largo de modos de vida e o direito a uma educação que as torne capazes de considerar o seu próprio modo de vida à luz dessas alternativas e, em última análise, de rever ou rejeitar o modo de vida que os pais lhes transmitiriam.”

Não é um belo programa? Dirão que não se pode esperar sem risco de fantasia que a escola pública, sujeita ao poder político, ou a escola privada, sujeita ao lucro, privilegiem interesses que, no fundo, contrariam os de quem vota e paga. Mas é desde logo um bom argumento para ponderar a intervenção ou o direito à intervenção dos pais na escola. Pelo menos. E aliás, a fantasia estrutura um bom princípio de resistência à noção actual e degradada que exige da escola que forme profissionais, cidadãos cumpridores, gente capaz de fazer contas de cabeça.

*

Mais adiante, no mesmo livro, mesmo sujeito, etc.:

“Temos perante as crianças tanto o dever de lhes proporcionar uma infância rica e agradável como o dever de as preparar de modo a que possam usufruir de um leque significativo de oportunidades que lhes permita ter uma idade adulta próspera.”

Qualquer dos deveres é irrecusável, e alguns dirão que um implica o outro. Na verdade são distintos: um preserva o estado da infância, outro desvaloriza-o como etapa provisória da formação; um sublinha a actualidade livre de qualquer propósito, outro subordina a instrução à teleologia. A escola não sobrevive a esta contradição sem se degradar. Aliás, a escola não sobrevive a esta contradição: morre, depois renasce disfarçada de escolaridade obrigatória.



*Harry Brighouse, On Education, Londres, Routledge, 2006.

Longa vida aos espirituosos*!

(reprise)

Vivemos numa cultura em que os critérios do ser humano, e portanto de participação na comunicação, estão fixados de forma demasiado rígida. Nem incubos, nem súcubos, nem anjos, nem demónios se admitem hoje como interlocutores de pleno direito. Não acho isto nada bem.

Boris Groys

*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Primeira sessão (malogro)

—?
— Bom, cá estou eu…
Isto começa mal!
— Essa agora! porquê?
— Ora, uma simples frase com tanta asneira, ou uma só, incompatível de raiz com o que pretendemos fazer: presumir que se sabe de antemão…
— … que se sabe de antemão o quê?
— Que há um “cá”, designável e localizável. Que se pode habitá-lo, entrar ou sair ou permanecer nesse “cá”. E sobretudo que, chegando a esse “cá”, o tal “eu” continua “eu”. No fundo, presumir que há um “eu”, uno, sempre designável, sempre localizável, e através de todos os mundos por onde passa imutável e por isso identificável…
— Que coisa desagradável, tanto ável. Não sei se é gostável.
— Não te queixes. Isto tem de ser bem feito.Vá lá, sai e volta a entrar.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Pequeno ajuste

— Mudamos de nome agora, é?!
— Só um pequeno ajuste. Passou o tempo das contradições performativas, é muito surrado, muito pós-moderno, muito lúdico, que tédio...
— De acordo, sem a menor dúvida. Mais vale uma boa ou piedosa interjeição.
— Não é?!

Dinheiro

— Ponderei, pensei, e olha! resolvi aceitar aquela tua ideia, a proposta de encenarmos a psicanálise.
— Boa! quando começamos?
— Calma, há um ponto que precisa de esclarecimento: o dinheiro.
— Dinheiro?! Que dinheiro?
— Não disseste que eu devia pagar?
— Sim, claro, não há psicanálise sem pagamento. Como queres tu garantir a distância do analista? O pagamento protege analista e cliente dos fluxos passionais; por outro lado, é quase como pagar a alguém para ser nosso amigo ou simplesmente simpatizar connosco.
— Safa! recorrem ao dinheiro para isso?
— A coisa é tão familiar, tão comum, que já ninguém se apercebe da função original do dinheiro. Mas é isso mesmo, posso garantir-te. A função original do dinheiro, a própria razão da sua invenção, não é outra.
— Matar o desejo? Ou substituir o desejo? Não percebo bem…
— Desejo!? Qual desejo?! Não, homem, pagar ao psicanalista. A razão de ser do dinheiro é pagar ao psicanalista.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Inquéritos

Não me espanta a alguma perplexidade. Nem a Perplexidade. Já me causa a mesma perplexidade que estes inquéritos continuem. Acho que alguém disse: se não queres que o teu vizinho te minta, não lhe perguntes nada. Como se a causa da mentira fosse a própria exigência de verdade. (Quem já experimentou garante-me que é assim mesmo, e que o conselho vale para amigos, cônjuges, políticos, colegas de trabalho e irmãos. Mas, por outro lado, sabe-se que há muitos limites para a exigência de verdade. Muitíssimos.) Os inquéritos querem saber, decerto. Curiosamente, ou não, parecem concluir-se sempre com o que já se sabia. Inquire-se para saber o que se desconhece ou para confirmar o que se sabe? Pergunta-se porque se sabe ou porque se quer saber?

*

Também pode ser coisa de amorosos. Por exemplo, a esperança. A esperança pode tudo. Os autores destes inquéritos, eternos pacientes dessa loucura mansa que é a dos livros, não se conformam com o desdém da juventude. Em cada golpe de inquérito que desferem vai tudo posto na esperança de que a realidade tenha mudado enfim. Ah, já se lê mais um por cento. Que bom, imagina, mais três por cento disseram ter lido um livro inteiro na semana passada. Fantástico, o número de pessoas que odeiam os livros caiu de x para x — 0,089… E por aí fora. É a esperança, que tudo pode.

*

Que mal há na ilusão? Ninguém vive sem ela (ou fora dela). As ilusões estruturam respostas a problemas ou, quando menos, a dificuldades. Deixa-se actuar a ilusão, e quando a estrutura está pronta e a andar na rua (ao contrário do que pretendiam os estudantes de 68), activa-se o antídoto: a realidade contra o desejo, ou coisa assim. O conhecimento vale, então, porque assente na realidade e não no desejo do sujeito, maníaco, louco manso ou amoroso. Quer isto dizer que esses inquéritos, se forem mesmo coisa de mania, loucura mansa, de sujeitos amorosos, tornam-se uma forma muito legítima de propagandear os livros e de difundir a leitura. Pouca gente a ler? Decerto porque se não fizeram suficientes inquéritos aos hábitos de leitura. Longa vida aos sociólogos, não aos espirituosos.

*

O que conduz a outro ponto. O que quer que sejam os inquéritos, sempre se presume que as perguntas estão certas. Quero dizer que se presume que, quando se pergunta a alguém “Quantos livros leu este ano?” a pergunta em si mesma não oferece dificuldades de interpretação. Um engraçadinho armado em kantiano poderia, porém, compor um textinho com o título: Resposta à pergunta: o que é ler um livro? Quem havia de o condenar? Decerto logo o sociólogo, sobretudo se caindo na categoria do maníaco, louco manso ou sujeito amoroso: nessas categorias sabe-se o que é um livro, sabe-se o que é ler, sabe-se o que é ler um livro. Fora delas: não se sabe. Já não se sabe. Já não se pode saber. Quantos dos que responderam “nenhum” não presumem na pergunta simplesmente uma certa ideia de livro, uma certa ideia de leitura, uma certa ideia do que seja ler um livro?

*

Devíamos fazer um inquérito aos modos dos inquéritos. Não para continuar a ilusão, porque os resultados não seriam melhores. Seriam seguramente piores, e por isto: quem não lê livros não tem noção nenhuma das possibilidades de sentido da expressão “ler livros” na pergunta “costuma ler livros?”