Depois da escola, a escola
Um sujeito abeira-se dum livro sobre educação* e logo lê nas primeiras linhas:
“Cada vez mais se exige da escola que compense o fracasso das outras instituições sociais. Pela primeira vez na história, esperamos que dê instrução a todos, e não apenas àqueles cujos pais já tinham sido eles próprios instruídos. E espera-se isso apesar de uma larga massa de crianças ser mantida na extrema pobreza, e apesar de as crianças serem rodeadas, em idades muito precoces, por uma cultura popular ardorosamente anti-intelectual.”
Valia a pena acrescentar que, no geral, as opiniões, discursos, ideias que correm pela televisão e pelos jornais, em vagas mais ou menos periódicas, integram perfeitamente, completando-a, essa cultura popular anti-intelectual. Pelo menos enquanto ignoram, como tendem a ignorar ou a escamotear, os limites impostos à escola pelas próprias exigências que lhe fazem. Dir-se-ia que a escola não cumpre porque se degradou, sozinha e tendo a possibilidade de não se degradar. Como se um grupo de malfeitores perversos tivesse tomado conta dela e a desviasse do seu natural, legítimo e original rumo. Daí o sempre assegurado sucesso dos que polemizam contra caricaturas (o “eduquês”, os manuais medíocres, etc.).
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O mesmo sujeito, entretanto, vira a página e encontra a formulação dos princípios que as escolas, os governantes e os educadores deveriam adoptar. Logo assim:
“Esses princípios centram-se no interesse das crianças e não nos interesses mais vastos da sociedade, das empresas, das igrejas ou, já agora, dos pais. As crianças têm o direito de conhecer um espectro largo de modos de vida e o direito a uma educação que as torne capazes de considerar o seu próprio modo de vida à luz dessas alternativas e, em última análise, de rever ou rejeitar o modo de vida que os pais lhes transmitiriam.”
Não é um belo programa? Dirão que não se pode esperar sem risco de fantasia que a escola pública, sujeita ao poder político, ou a escola privada, sujeita ao lucro, privilegiem interesses que, no fundo, contrariam os de quem vota e paga. Mas é desde logo um bom argumento para ponderar a intervenção ou o direito à intervenção dos pais na escola. Pelo menos. E aliás, a fantasia estrutura um bom princípio de resistência à noção actual e degradada que exige da escola que forme profissionais, cidadãos cumpridores, gente capaz de fazer contas de cabeça.
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Mais adiante, no mesmo livro, mesmo sujeito, etc.:
“Temos perante as crianças tanto o dever de lhes proporcionar uma infância rica e agradável como o dever de as preparar de modo a que possam usufruir de um leque significativo de oportunidades que lhes permita ter uma idade adulta próspera.”
Qualquer dos deveres é irrecusável, e alguns dirão que um implica o outro. Na verdade são distintos: um preserva o estado da infância, outro desvaloriza-o como etapa provisória da formação; um sublinha a actualidade livre de qualquer propósito, outro subordina a instrução à teleologia. A escola não sobrevive a esta contradição sem se degradar.
*Harry Brighouse, On Education, Londres, Routledge, 2006.