quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Inquéritos

Não me espanta a alguma perplexidade. Nem a Perplexidade. Já me causa a mesma perplexidade que estes inquéritos continuem. Acho que alguém disse: se não queres que o teu vizinho te minta, não lhe perguntes nada. Como se a causa da mentira fosse a própria exigência de verdade. (Quem já experimentou garante-me que é assim mesmo, e que o conselho vale para amigos, cônjuges, políticos, colegas de trabalho e irmãos. Mas, por outro lado, sabe-se que há muitos limites para a exigência de verdade. Muitíssimos.) Os inquéritos querem saber, decerto. Curiosamente, ou não, parecem concluir-se sempre com o que já se sabia. Inquire-se para saber o que se desconhece ou para confirmar o que se sabe? Pergunta-se porque se sabe ou porque se quer saber?

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Também pode ser coisa de amorosos. Por exemplo, a esperança. A esperança pode tudo. Os autores destes inquéritos, eternos pacientes dessa loucura mansa que é a dos livros, não se conformam com o desdém da juventude. Em cada golpe de inquérito que desferem vai tudo posto na esperança de que a realidade tenha mudado enfim. Ah, já se lê mais um por cento. Que bom, imagina, mais três por cento disseram ter lido um livro inteiro na semana passada. Fantástico, o número de pessoas que odeiam os livros caiu de x para x — 0,089… E por aí fora. É a esperança, que tudo pode.

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Que mal há na ilusão? Ninguém vive sem ela (ou fora dela). As ilusões estruturam respostas a problemas ou, quando menos, a dificuldades. Deixa-se actuar a ilusão, e quando a estrutura está pronta e a andar na rua (ao contrário do que pretendiam os estudantes de 68), activa-se o antídoto: a realidade contra o desejo, ou coisa assim. O conhecimento vale, então, porque assente na realidade e não no desejo do sujeito, maníaco, louco manso ou amoroso. Quer isto dizer que esses inquéritos, se forem mesmo coisa de mania, loucura mansa, de sujeitos amorosos, tornam-se uma forma muito legítima de propagandear os livros e de difundir a leitura. Pouca gente a ler? Decerto porque se não fizeram suficientes inquéritos aos hábitos de leitura. Longa vida aos sociólogos, não aos espirituosos.

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O que conduz a outro ponto. O que quer que sejam os inquéritos, sempre se presume que as perguntas estão certas. Quero dizer que se presume que, quando se pergunta a alguém “Quantos livros leu este ano?” a pergunta em si mesma não oferece dificuldades de interpretação. Um engraçadinho armado em kantiano poderia, porém, compor um textinho com o título: Resposta à pergunta: o que é ler um livro? Quem havia de o condenar? Decerto logo o sociólogo, sobretudo se caindo na categoria do maníaco, louco manso ou sujeito amoroso: nessas categorias sabe-se o que é um livro, sabe-se o que é ler, sabe-se o que é ler um livro. Fora delas: não se sabe. Já não se sabe. Já não se pode saber. Quantos dos que responderam “nenhum” não presumem na pergunta simplesmente uma certa ideia de livro, uma certa ideia de leitura, uma certa ideia do que seja ler um livro?

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Devíamos fazer um inquérito aos modos dos inquéritos. Não para continuar a ilusão, porque os resultados não seriam melhores. Seriam seguramente piores, e por isto: quem não lê livros não tem noção nenhuma das possibilidades de sentido da expressão “ler livros” na pergunta “costuma ler livros?”