domingo, 30 de julho de 2006

Diálogo de mortos


— Encontrei ontem o Cornélio.
— O Penna?
— Esse mesmo, mas ia jovial.
— Ah sim?
— Diz que lhe saiu agora a mais bela menina morta… Que raio queria ele dizer?
— Sei lá eu… mas olha que meninas mortas é o que não falta por aí.
— Mas era a mais bela, ele disse que era a mais bela…
— Então deve ser mesmo, só pode ser mesmo. A mais bela...

terça-feira, 18 de julho de 2006

Mas qual?

Mas então... se somos dois, um de nós pode estar vivo, não?

segunda-feira, 17 de julho de 2006

Cisão

Ficámos dois, mas não foi uma cisão, foi um golpe: de estado de espírito, de asa, e de golpe. Mas não uma cisão. Os mortos não se perdem em divergências, recriminações, retaliações, golpes de poder para o poder e mais poder... Não, não foi uma cisão: mas ficámos dois!

Golpe

Vou dar um golpe de estado de espírito e livrar-me dos vivos. Era tempo! e eles que me perdoem. Se puderem.

domingo, 16 de julho de 2006

O gene operador

Os genes equiparam-se ao nome próprio num ponto preciso: recebem-se sem meio de escolha, sem deliberação, sem aceitação. Um sujeito mal se precata, e já não se livra deles. Nunca mais. E dado que se recebem com a informação de que sobreviverão à nossa morte, ou porque por sua vez se transmitem ou porque se fixam sem corpo na memória ou lá o que é — recebem-se anunciando a morte, de antemão e em definitivo. Assim, por exemplo: Tu, rapazito, acabadito de nascer, serás chamado Vicente, e sempre assim serás chamado, mesmo depois de morto, e aliás, vais ser chamado, e Vicente, para que possas morrer sem que te esqueçam e os que ficam possam falar de ti ou mesmo chamar-te quando não estiveres presente, ou porque foste comprar cigarros, ou porque morreste mesmo, Vicente. Entretanto, é melhor que não fumes, se não quiseres morrer cedo. Há casos de cancro de pulmão na família…? O avô? Diacho!… um sujeito mal se precata, e já não se livra deles. Dos avós, nunca, dos cigarros, já é possível. Não fumes, Vicente.

sexta-feira, 14 de julho de 2006

Voilá!

Vivemos numa cultura em que os critérios do ser humano, e portanto de participação na comunicação, estão fixados de forma demasiado rígida. Nem incubos, nem súcubos, nem anjos, nem demónios se admitem hoje como interlocutores de pleno direito. Não acho isto nada bem.

Boris Groys

terça-feira, 11 de julho de 2006

Juntar, espalhar as cinzas

…ah sei , talvez haja muitas vantagens, sim, muitas vantagens em estar vivo. Sempre se faz tanta coisa, não é? E simples, coisas simples. Tomar uma cerveja na praia ou, quem sabe, um sumo, brincar com uma criança ou tê-la a dormir nos braços, ouvir um amigo que precisa de ser ouvido, acordar feliz quando não parecia possível, combinar um encontro ou ver um filme na companhia certa. Um filme, sim. Um daqueles filmes que se vão ver sem fazer ideia do que sejam, pura surpresa, pode ser tudo, pode ser um filme chinês, quase chinês, chinês entre outras coisas, pode ser um melodrama, quase um melodrama, pode chamar-se qualquer coisa como «A Filha do Botânico», pode ser que no fim haja alguém ao lado que chora, pode ser que no fim haja uma carta e alguém que na carta pede, antes de morrer, que lhe misturem as cinzas com as cinzas da pessoa amada que também vai morrer, pode ser que peça para espalharem as cinzas misturadas nas águas do lago e para quê, para que assim, calcule-se, «possam viver tranquilas», ambas, mortas, em cinzas, ambas, «possam viver tranquilas». Ah sei

segunda-feira, 3 de julho de 2006

Política da imortalidade

Conversa interessante, não? Quando deixa de haver garantia de imortalidade, abre-se o espaço para a política da imortalidade — isto, claro, desde que não se renuncie à imortalidade. Em tempos saudosos, o não menos saudoso Osvaldo Silvestre elucubrava muito a respeito do cânone: noites a fio, coitado. Que será feito dele, a propósito…? Eu então escarnecia, hoje chego a arrepender-me. Um dia, ele lembrar-se-á ou não, observei-lhe que achava nociva a preocupação com o cânone, coisa importada e mais própria de agentes funerários. A comparação era imprestável, agora é que me ocorre a boa: uma família enorme, muito grande mesmo, sofre mortandade súbita de velhos e novos, dezenas de mortos num espaço curto, digamos uma semana: sem recursos, vêem-se os sobreviventes forçados a escolher entre os mortos quais serão enterrados devidamente e quais deitados à vala comum, ou seja, quais serão lembrados, quais serão esquecidos. Isso é o cânone, valha-nos Deus! nada mais do que obrigar os vivos a lembrarem alguns mortos para que não sejam esquecidos. Alguém tem de escolher os mortos e obrigar os vivos a recordá-los. E quando daqui olho as discussões minutíssimas que o assunto suscita, invariavelmente em volta dos programas escolares, fico com a impressão de que certos defensores dos "clássicos" militam na esperança de que um ou outro morto um dia regresse momentaneamente para lhes agradecer. Havia de ter graça.

Política da imortalidade

Vivemos assim nessa dicotomia: queremos matar os mortos célebres, mas queremos simultaneamente que eles nos reconheçam e não conseguimos nem uma coisa nem outra. Não temos qualquer hipótese contra a imortalidade dos mortos.

Boris Groys

Política da imortalidade

Vivemos assim nessa dicotomia: queremos matar os mortos célebres, mas queremos simultaneamente que eles nos reconheçam e não conseguimos nem uma coisa nem outra. Contra a imortalidade dos mortos, não temos qualquer hipótese.

Boris Groys

Política da imortalidade

Não temos a mínima hipótese contra a imortalidade dos mortos.

Boris Groys

Política da imortalidade

Contra a imortalidade dos mortos, não temos a mínima hipótese.

Boris Groys

domingo, 2 de julho de 2006