sábado, 9 de junho de 2007

Sim, Bartleby


Às vezes perde-se muito tempo. Ou passamos por essa ilusão; a de perder muito tempo, quero dizer. Deverá haver três milhões de página escritas sobre a ligação entre literatura e psicanálise; a conjunção "e", aliás, alcançou mesmo instituir uma disciplina académica: Literatura e Psicanálise. Vai-se a ver, no entanto, e o único ponto em que uma e outra se cruzam se calhar escapou. Digamos que é afinal o mais difícil, pelo menos não muito ou quase nada praticado: dar atenção a quem fala, ouvir numa história menos a história propriamente dita do que aquele que a conta, o que ele deixa de fora, o que deixa escapar sem querer, os detritos, as zonas de incoerência, os pequenos lapsos. Ter ouvido para os narradores, para a voz que fala. (Tudo muito metafórico, porque na literatura não há rigorosamente vozes ou pelo menos ninguém que fale. Algo foi inscrito antes de chegarmos, e não foi inscrito para nós — e é tudo.)

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Bartleby: como entender o prestígio da estranha figura — decerto justificado — livre daquele que a deu a conhecer? Aquele que conta é justamente quem não sabe, quem não entendeu, quem nunca chegou a entender. Mas decidiu: primeiro amparar Bartleby, depois contar a partir dessa falta irremediável. A importância do narrador, ao ouvinte atento, supera a de Bartleby: porque esteve perante o inaceitável e o ininteligível, acolheu o primeiro e reconheceu o segundo. É isso, e apenas isso, ou decisivamente isso, que radicalmente singulariza esta estranha história.

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Há um sinal dado no início, a propósito de Turkey, o escrivão que se tornava praticamente imprestável a partir do meio-dia e que o patrão por isso mesmo quis dispensar da parte da tarde. O homem resistiu, o outro percebeu: "At all events, I saw that go he would not. So I made up my mind to let him stay… " Resolver-se ao que o outro de qualquer modo faria? Sim! porque não se trata de aceitação passiva, mas de activa renúncia à violência e consequentemente recusa de confundir decisão, acção, iniciativa, com imposição, força, violência. É um modo de preservar a autonomia perante a irredutibilidade do outro. Mas, no caso de Turkey, a irredutibilidade entende-se e as suas consequências são, mais que previsíveis, familiares. Com Bartleby, o narrador será confrontado com a ininteligibilidade, e aquilo que o vai definir será a capacidade de renunciar à violência quando nada lhe resta senão reconhecer a ininteligibilidade. Uma forma também ela anómala de preferir.

 
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A anomalia é aceitar, uma missão, um apelo, um chamamento, qualquer coisa assim, cujo sentido lhe escapa mas se lhe impõe incontornável: "Yes, Bartleby, stay there behind your screen, thought I; I shall persecute you no more; you are harmless and noiseless as any of these old chairs; in short, I never feel so private as when I know you are here. At last I see it, I feel it; I penetrate to the predestinated purpose of my life. I am content. Others may have loftier parts to enact; but my mission in this world, Bartleby, is to furnish you with office-room for such period as you may see fit to remain."

É menos relevante lembrar que ele permanece fiel a esta decisão, ainda quando abandona o escritório, do que lembrar que com ela sobreviveu bem ao ressentimento, à fraqueza de se sentir fraco, ao medo de ter perdido a coragem, ao ódio e à violência. Se hoje necessariamente ( sim, necessariamente) dizemos "Sim, Bartleby", é por causa de tudo isso.