quinta-feira, 29 de junho de 2006

Cúmplices ou rivais?

Desconfio que tenho exagerado as vantagens da morte. Compreensível, parece-me: nesta condição de morto, o decisivo é aceitar — e sempre se aceita melhor dourando a pílula. Quem engoliria a pílula se não fosse dourada? Hein? Mas vai nisso algum exagero, porque os inconvenientes saltam à cara aqui e ali. Hoje, por exemplo, o que eu não daria para ter um corpo, corpito, fraco e magro que fosse, para sentar o cu numa das cadeiras do auditório da Casa Fernando Pessoa onde se irá tentar responder à pergunta “Blogues e livros: cúmplices ou rivais?” Um dos tentadores é o grande crítico, o mesmo sim, o mesmo que há poucas semanas declarou que nunca lia blogues e que assim mesmo é apresentado: “que diz não ler blogues”. Não hei-de ter uma curiosidade enorme de saber o que poderá ele então dizer de relevante? O que assim se prova é que a curiosidade é imaterial, incorporal, puramente espiritual, mas não transportável. E agora que reparo nesta conclusão, reparo também e de seguida que já ganhei com o debate qualquer coisa que talvez não ganhasse se lá pudesse ir. Além de que, entretanto, o Eduardo Pitta sempre há-de contar alguma coisita... Não, volto ao princípio, há muita vantagem em estar morto.

sábado, 24 de junho de 2006

A um crítico desgraçado

Se insistem em continuar a escrever que a crítica morreu, ainda perco a paciência: eu morri e não estou menos activo. Muita coisa morreu, que nem por isso deixa de ter futuro. Muita coisa não tem futuro, que nem por isso morre. Etc. O desgraçado Augusto M. Seabra anda há semanas a esbracejar em folhetins no Público: por causa da crítica. Digo “desgraçado” porque, não tendo uma prosa particularmente persuasiva, parece antes destinado a sacrificar-se para comprovar o que tenta descrever. Já aconteceu. O ex-companheiro de crítica Prado Coelho refere-o assim, hoje, no mesmo jornal: “Pessoas amigas dizem-me que Augusto M. Seabra se inquieta, em texto recente, profundamente sobre a situação da crítica — e para ele tal prática chegou ao fim. Não li. Devia estar em viagem. Mas sou capaz de imaginar. Como sempre no Augusto, o estilo é acusatório: ele pensa que a culpa é das pessoas, mais ou menos vendidas ao sistema.” E despeja-lhe em cima o costumeiro balde de juízos definitivos, com que Prado Coelho, reputando-se juiz supremo das almas que em tempos elegeu (e até das outras!), decreta a irrelevância deste ou daquele. Valeu a pena, ó desgraçado Seabra, esforçares-te nos folhetins, se o outro tos desqualifica sem precisar de os ler? Não será culpa tua se um homem reconhecidamente desprovido de imaginação alcança imaginar artigos teus que não leu e até os descreve como se imaginação e realidade coincidissem? “Como sempre no Augusto, o estilo é acusatório…” Nota, ó desgraçado, que ele não escreve “deve ser acusatório”, escreve “é acusatório”, porque nem duvida de que esteja certo na sua imaginação: não será culpa tua? Pensa nisso, desgraçado, pensa nisso. Depois, podes respirar fundo e talvez queiras despedir-te do jornal em que colaboras… quem sabe, quem sabe se seria boa solução. Não, não seria, porque pressuporia que as regras habituais estariam ainda em vigor, ou seja, que a crítica não morreu. Olha, chega aqui e imagina por tua vez isto que aqui conto: algum editor ou até o director, suspendia a publicação da prosa de Prado Coelho, fazia-lhe notar que, ao menos a respeito de um outro colaborador, não haveria ele de falar confessando de entrada que não leu, e depois remetia-lhe pelo correio, por fax ou por e-mail, competente cópia dos textos de Augusto M. Seabra. Sim, senhor, havia de ser bonito… não achas, ó desgraçado? Por outro lado, pode bem ser que Prado Coelho, amigo da rapaziada, esteja apenas a fornecer modelos aos jovens estudantes que agora prestam provas nos exames. De Português, por exemplo, respondendo assim: “Do Eça de Queirós não li nada. Devia estar na Internet. Mas sou capaz de imaginar. Como sempre no Eça, o estilo é realista… etc.” Nada como ser um grande crítico para provar, pelo exemplo, que a crítica nunca morrerá. (Esclareço que "grande crítico" designa aqui o Prado Coelho, não tu, desgraçado Seabra, não tu.)