terça-feira, 30 de maio de 2006

Lincando Manuel Bandeira, 3

Madrigal tão engraçadinho

Teresa, você é a coisa mais bonita que eu já vi até hoje na minha vida, inclusive o porquinho-da-índia que me deram quando eu tinha seis anos.

Manuel Bandeira, Libertinagem, 1930.

Lincando Manuel Bandeira, 2

Porquinho-da-índia

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…

— O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.


Manuel Bandeira, Libertinagem, 1930.

segunda-feira, 29 de maio de 2006

Lincando Manuel Bandeira, 1

Teresa


A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

Manuel Bandeira, Libertinagem, 1930.

São Paulo, Brasil, há muito tempo

O "adeus" de Teresa

A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus
E amamos juntos E depois na sala
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala

E ela, corando, murmurou-me: "adeus."
Uma noite entreabriu-se um reposteiro. . .
E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus
Era eu... Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa

E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"

Passaram tempos séc'los de delírio
Prazeres divinais gozos do Empíreo
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse "Voltarei! descansa!. . . "
Ela, chorando mais que uma criança,

Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"

Quando voltei era o palácio em festa!
E a voz d'Ela e de um homem lá na orquestra
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei! Ela me olhou branca surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!

E ela arquejando murmurou-me: "adeus!"

Castro Alves
São Paulo, 28 de Agosto de 1868

quarta-feira, 17 de maio de 2006

São Paulo, Brasil, por enquanto

Uma desvantagem de estar morto é a redução drástica do acesso à informação. Não me esqueci de ter dito que a Internet é universal e gratuita; mas funciona numa só direcção, de lá para cá: não posso perguntar. Numa palavra, não tenho interlocutor, estou só! pobre de mim!… Desculpem, já me recompus, não era isto que queria dizer. Queria dizer antes que se fica sem saber nada do que se passa no Brasil lendo os jornais portugueses: nem se tem a quem perguntar. (Os que morreram por estes dias em São Paulo e aqui chegam às carradas pouco sabem ou até nada entendem do que se passa.) Ora, se eu estivesse vivo, se ademais fosse brasileiro, se além disso vivesse em São Paulo e se, cúmulo da excelência, me chamasse Alcir, haveria de escrever a um amigo português qualquer coisa como isto:

Pois é, estava mesmo para lhe contar. Isto aqui é guerra. Mudei-me para o centro, como contei, para obter um pouco mais tranqüilidade. De fato, aqui é mais policiado do que lá no brejo. Mas como ia imaginar que agora atacariam os policiais? A dois quarteirões de casa há um posto de polícia. As ruas foram interditadas. As sirenes tocaram a noite toda durante todo o fim de semana. Dia das mães sangrento. Foram 251 ataques e 115 mortos até há pouco. Há muitos feridos. Mas o mais incrível é o seguinte: sabe por que a guerra foi suspensa hoje? Porque a cúpula da polícia foi ao presídio onde está preso o chefe do PCC (o grupo dos criminosos desta rebelião — mas há muitas outras), o famoso Marcola, e fez um acordo com ele! Foi o chefão da bandidagem que ordenou o cessar-fogo! Vai ter direito a vários privilégios. De lá, do presídio onde está (e ao que dizem a ler Dante…) comanda o cangaço. E a reação da polícia miúda, que leva bala nas ruas e favelas onde mora, não é menos impressionante: como retaliação matam as mães, filhos e parentes dos bandidos amotinados.
Isso aqui já acabou, meu caro. Não é figura de amplificação. Vai demorar para perceberem, mas já acabou. Qualquer idéia sequer de solução por aqui é mentirosa e cínica. O Lula é um desastre tão imenso que dói no osso. Está cada dia mais louco. Fez um pronunciamento há pouco dizendo que é pra não pensar nas coisas ruins. Logo mais vai dizer que o amor é lindo.
Abraço,
Alcir.

sexta-feira, 12 de maio de 2006

Espelhos

A crónica de hoje do nosso Manuel António Pina é extraordinária: um rosto para o medo, escreve ele. E termina perguntando aquilo sobre o rosto do desconhecido, da infância: se se pode chegar a vê-lo por arte da ciência, um dia. Pergunto-me eu se lhe terá ocorrido a história, que conta Guimarães Rosa, daquele homem que foi treinando para eliminar do respectivo reflexo no espelho todo o elemento acessório, espúrio, desprezível, até que primeiro chegou o dia em que viu nada, e depois o dia em que viu, sobressaindo do nada, "o ainda-nem-rosto — quase delineado apenas — mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só". "O espelho", justamente, é o título dessa história, das Primeiras Estórias. Ter-lhe-á ocorrido? ao nosso Manuel António Pina...

sexta-feira, 5 de maio de 2006

Qual?

Sim, qual... qual deles era eu? Não consigo perceber, tão-pouco lembrar-me... Há quanto tempo foi isto: onde estão elas, as flores de antanho?

quinta-feira, 4 de maio de 2006

Expedido para Manuel António Pina

Ao mesmo link, com respeito e admiração, correspondendo:

Mas, naquele raiar, ele sabia e achava: que a gente nunca pode apreciar, direito, mesmo, as coisas bonitas ou boas, que aconteciam. Às vezes, porque sobrevinham depressa ou inesperadamente, a gente nem estando arrumado. Ou esperadas, e então não tinham gosto de tão boas, eram só um arremedado grosseiro. Ou porque as outras coisas, as ruins, prosseguiam também, de lado e do outro, não deixando limpo lugar. Ou porque faltavam outras coisas, acontecidas em diferentes ocasiões, mas que careciam de formar junto com aquelas, para o completo. Ou porque, mesmo enquanto estavam acontecendo, a gente sabia que elas já estavam caminhando, para se acabar, roídas pelas horas, desmanchadas…


[João Guimarães Rosa, “Os cimos”, Primeiras estórias,1962.]

quarta-feira, 3 de maio de 2006

Crónica matinal, ainda

Está bem, cá está o link. Não o percam.

Crónica matinal

Um das boas coisas de estar morto é o acesso à Internet: universal e gratuito. E rápido. Não me perguntem porquê; não sei, já encontrei tudo assim, limito-me a usufruir, e apenas para ler blogues. Ficou-me o hábito… Aliás minto! Também leio sempre a crónica do Manuel António Pina na última página do Jornal de Notícias. Logo pela manhã (embora a delimitação do dia já não tenha sentido, gosto de preservar estes restos de sobrevivência). Precisam do link?