História dum blogue que acabou
Agora vamos supor um mundo bizarro em que os professores de humanidades estivessem, por qualquer motivo insondável, equiparados aos judeus sob o nazismo. Forças especiais notavelmente implacáveis perseguiam-nos, prendiam-nos, faziam-nos desaparecer dos seus locais habituais e reaparecer algures, em qualquer coisa como campos de concentração, onde eram obrigados a permanecer e a… concentrarem-se: iam ensinar primeiras letras e alguma cultura geral aos futuros mestres do mundo, um bando de macacos sobredotados e já treinados em diversos outros exercícios por especialistas de outras áreas. Acontece, então, que, algures em Lisboa, uma menina de doze anos, filha de um catedrático de Antropologia e de uma doutorada em História Contemporânea, ambos presos e deportados, escapa despercebida e aninha-se, coitadinha, escondida, no sótão; com um pequeno computador portátil consegue aceder à rede sem fios do vizinho, por sinal o mesmo chefe das forças especiais notavelmente implacáveis. Beneficiando desse abuso, a menina começa a escrever um blogue. Os primeiros posts impressionam pela lucidez, pela pertinência, pela relevância dos temas e respectiva organização, pela coerência do pensamento e, sobretudo, pela limpeza ortográfica, tão do agrado dos jornalistas que escrevem "paralizar" onde deviam escrever "paralisar". O blogue começa a ter sucesso; gente do ministério da educação inquieta-se: a autora, sendo menina e nova, só podia provir duma escola privada, dessas que se esmeram. As forças de segurança, pelo seu lado, receiam que tamanha lucidez e tão aplicada capacidade de escrita tarde ou cedo, mas talvez cedo, se mobilizem para a denúncia da situação a um tempo misteriosa e iníqua dos professores da área de humanidades. Começam as buscas. Informáticos particularmente dotados — os mesmos que treinaram os referidos macacos na manipulação de computadores — tentam rastrear a origem do blogue e do respectivo correio electrónico. Depressa chegam, por meios lá deles, ao endereço do chefe das forças especiais notavelmente implacáveis. O escândalo rebenta! Seria ele a fazer-se passar por uma menina de doze anos? O guarda-fatos não exibia roupa feminina, mas ele podia escrever nu: seria até mais perverso. Por outro lado, a lealdade do oficial parecia comprovada, acima de suspeita razoável… O certo é que cortada a ligação à Internet, o blogue pára. Como se tivesse sido bloqueado. Blogue interrompido, estão a ver? Pela cidade desata a correr a pergunta: "É verdade que o blogue acabou?" (O blogue da menina era já familiarmente conhecido como "o blogue".) A angústia cresce. Não sendo possível — nem legítimo — prender o chefe das forças especiais notavelmente implacáveis, o governo decide restabelecer a ligação à Internet em casa do oficial, mas restringindo-lhe o uso do computador, a que apenas podia aceder sob vigilância apertada, que ele próprio, aliás, já tinha solicitado por ocasião das primeiras suspeitas (a fim de provar sem dúvida a sua inocência). O blogue não tardou a recomeçar. E pela cidade a correr a pergunta: "Então afinal o blogue ainda não acabou?" O problema cresce. Os informáticos particularmente dotados coçam a cabeça. Tudo parece encaminhar-se para o impasse. Até que a menina, como seria de esperar, comete um erro. Um pequeno erro, um deslize sem importância, nem sequer um crime, ou nem sequer um crime grave. Aborrecida, incapaz de extrair do blogue toda a diversão e todo o ânimo que a sua difícil situação requeria, começa a sacar músicas e filmes da Internet. Usando a rede do vizinho, claro. O chefe das forças especiais notavelmente implacáveis cedo se vê confrontando com uma conta descomunal: ultrapassara largamente o máximo de tráfego de download permitido. Ora, não havendo qualquer filme no computador dele, a que acedia, como se sabe, debaixo de rigorosa vigilância, ficava provado que a ligação era insegura. Alguém se servia da rede sem fios para disseminar a inquietação e inspirar a piedade dos cidadãos. De novo chamados, os informáticos particularmente dotados fazem o que, segundo alguns, deviam ter começado por fazer: encriptam a rede com uma chave virtualmente impenetrável. A menina de doze anos, no seu escuro sótão, perde o acesso. Sem conhecimentos informáticos, sem especial imaginação, nunca mais poderá publicar posts, nem sequer a dizer que nunca mais poderá publicar posts. A sua situação é inteiramente desesperada, mas ninguém sabe. O blogue pára, acaba, suspenso brutalmente, mas ninguém repara. Nunca mais ninguém se lembrará dele, e a menina mais dia menos dia terá de arranjar outro meio de.