sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

Tudo isso

— Então? volto a perguntar: acabamos assim o ano, o da nossa morte?
— Se insistes… mas é tão triste…
— Insisto, e é triste, mas qualquer tonto sabe dizer que a tristeza faz parte da vida, por maioria de razão não há-de fazer parte da morte?
— Cá vai, então, de Rubem Braga:

É duro confessar isto, mas é preciso forrar o coração de dureza, porque não sabemos se tudo isso é o fim de uma era ou o começo de uma nova era mais desolada e difícil de suportar.

domingo, 24 de dezembro de 2006

Saying Yes to Mess



— Acabamos assim este ano, o da nossa morte?
— Dizendo "sim" à desordem ou à porcaria?
— Distingues?
— Bom, sempre é o ano da nossa morte...
— A desordem, então, dizemos "sim" à desordem.

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

Missão cumprida

— Não ficou mal, pois não?
— Não, nada mal. Podemos até mostrar algum orgulho. Legítimo, como sempre se acrescenta.
— Claro, porque o orgulho, se não for legítimo… é ilegítimo!

(risos)

— Gostei particularmente da frase: “Por que raio as palavras só são boas quando assinadas?» E ainda mais da proposta: “Um monumento à palavra desconhecida, já!”
— Espera, que isso está errado, porra! Emenda. Desconhecido é o autor, não a palavra. A “palavra órfã” ficava melhor. Um monumento à palavra órfã, já! Sem pai, sem ninguém que a defenda, que se chegue à frente, como se diz agora. A blogosfera devia ser um imenso espaço democrático de palavras órfãs, que valessem por si mesmas e não pela personalidade de quem as assina. Não pela personalidade ou autoridade do pai que as leva à escola… Uma oportunidade única, caramba.
— Sem dúvida. O problema é sempre o crime. A calúnia, a difamação, o insulto, tudo isso requer um sujeito imputável. As pessoas ficam nervosas quando não há sujeito imputável. O “foi aquele” parece atenuar a gravidade do crime.
— Deve ser influência dos policiais românticos, os do cinema: o ladrão que deixa assinatura, o serial killer que assina pelo modus operandi, o homicida que não descansa enquanto não se sabe que foi ele. O crime assinado tem outro valor, meu caro.
— Outro valor, meu caro, outro valor. Aliás é por isso que a polícia persegue os criminosos e os tribunais os julgam: porque não suportam o anonimato. A ordem não tolera o anonimato. Tem que ser tudo assinado. Até as calúnias…
— O estranho nisto é que a calúnia é uma excepção na tal blogosfera: 99% do que por ali se publica não calunia, não difama, não insulta. Porquê então tanta preocupação? Porquê regular, impor, exigir em função dos abusos, dos desvios, das aberrações?
— Estranho, de facto. E ao mesmo tempo maravilhoso. Tem-se um meio destes, democrático, amplo, vigoroso, capaz de romper rotinas ou derrubar tradições muito velhas, e logo se quer disciplinar. Ou higienizar. Como se o comportamento desviante infectasse tudo…
— Pois, a tal metáfora do “organismo vivo”, como diz aquele português que escreve romances de quinhentas páginas. As pessoas acreditam demasiado nas metáforas. Até as levam à letra! A blogosfera não é um organismo vivo, logo não corre risco de infecção.
— Sim, aquilo são uns sujeitos que se exprimem… obriguem-nos ao anonimato a ver se não se calam.
— Que raio de ideia é essa agora? Pusemos isso no texto? não me lembro.
— Não, não pusemos. Ocorreu-me agora… e por sinal… hmmm… uns sujeitos que se exprimem. Deve ser por isso que não suportam o anonimato.
— Não, homem, a ordem é que não tolera o anonimato. Já assentámos nisso.
— Tens razão. E nós somos contra a ordem.
— Contra!
— A blogosfera é contra a ordem!
— Contra!

A missão urgente

— Chamaste? Disseram-me que querias falar comigo…
— Sim, sim, quero. Voltámos ao activo.
— Voltámos? Os dois? Não dei por nada, e não sei se me apetece…
— Que remédio, meu caro, que remédio. Temos uma missão…
— … credo! uma missão?!
— E urgente! Uma missão urgente.
— Não sei se me apetece. Mas diz lá o que é…
— Defender o anonimato na blogosfera.
— Hmm… não sei se me apetece.

sexta-feira, 15 de setembro de 2006

Solidários


— Que raio… Mulheres nuas agora? Quem é esta?
Germaine Greer, anarquista e feminista…
— Mas está aqui a fazer o quê?
— Ora essa, solidariza-se com bloggers de alta plana precisados de ânimo, o Luís Mourão e a Carla Quevedo
— Ah, pois claro, que pergunta a minha… Mas então… e para o enganado Eduardo Pitta, nada?
— Deus em livre!

sexta-feira, 1 de setembro de 2006

Desesperadíssima!

— Então falaste com ela…
— Agora mesmo, nem acreditas no que me disse…
— Vá lá, diz de uma vez.
— Que está farta disto
— Não estranho, não estranho. Mas caramba! que vai ela fazer? A situação é desesperada…
— Direi mesmo mais, desesperadíssima! Mas olha, a solução, a ela, parece-lhe fácil…
— Desembucha, homem!
— Diz que vai emigrar para a Grécia antiga.

segunda-feira, 28 de agosto de 2006

Golpe de teatro

Ela diz que tem dias, nota…
— Mas quem não tem? Nós não, mas o resto das pessoas… todos têm dias. Dias com o Édipo é que me parece grande despropósito. Pergunto-me aliás se o Freud…
— Tinha dias?
— Não, pergunto-me se o Freud, se tivesse vivido pelos anos 60, teria gostado de conhecer o Vasco Pulido Valente.
— É uma boa pergunta, sim, senhor. Melhor não há. Nem sequer esta, que encontrei há dias: por que raio se fala tanto de complexo de Édipo, quando quem tem medo de ser morto é o Laio? E além disso, pais a matarem ou a tentarem matar os filhos é padrão mais frequente e mais universal do que filhos a matarem os pais: o que até o próprio Laio comprova!
— O Freud, se tivesse vivido nos anos 60, teria gostado mais do Brecht do que do Vasco Pulido Valente.
— Iac! que nojo!
— Podes crer! Mas é o teatro, sabes? O complexo de Édipo vive do golpe de teatro. O Édipo freudiano, acho que é o do Sófocles: o processo através do qual o mesmo Édipo descobre que matou o pai…
— E esse processo é teatral! Por isso… ah, percebi, não descobre, afinal, antes se convence. É isso?
— Eh... tem dias…

quinta-feira, 24 de agosto de 2006

Vida?


e então eu disse-lhe: — Larga-me…
— Devias ter dito deslarga: é o que se usa agora…
— Não interrompas, porra! isto é sério! Eu disse-lhe: — Larga-me, é a minha vida e tu não fazes parte dela!
— Chiça! Disseste-lhe isso? Que coisa horrível… não tens vergonha?!
— Vergonha, eu tenho. O que não tenho é vida. E devias ter dito dissestes-lhe… não é o que se usa agora?
...

sábado, 19 de agosto de 2006

Ralação

—Estou aqui tão ralado, que nem te digo…
— Porquê, homem?
— Aquela amiga do Eduardo Pitta terá chegado bem a Madrid?

sexta-feira, 18 de agosto de 2006

Sans blague!

— Olha-me isto, esta frase que me ocorreu agora: Eu sou eu, e a minha circunstância que se foda.
— ...!
— Que me dizes?
— ...
— Nada? Não dizes nada...?
— Okay, está bem, a tua circunstância que se foda.

quinta-feira, 17 de agosto de 2006

Vozes

— Aquele Mourão — lembras-te dele? entrou já no fim — é que tem dito coisas pertinentes a respeito do assunto Günter Grass.
— Muito pertinentes. Tenho seguido. Curioso como tudo calha sempre no mesmo ponto…
— Sim, sei o que vais dizer. As pessoas lêem, mas esquecem-se de que lêem livros, não outras pessoas. Lêem sempre convencidos de que ouvem a voz de outros, homens e mulheres, autores, autoras…
— Era bom que ficasse por aí. É que, para fazerem isso, têm de ler os livros ouvindo vozes, mas vozes de mortos, de gente já morta, assim como nós ambos, percebes? E um dia sobressaltam-se muito quando algum incidente lhes mostra que afinal estão vivos, não são mortos nem aceitam que lhes imputem vozes.
— Triste, muito triste ver a literatura chegar ao fim sem ter conseguido educar os leitores.
— Ora, que disparate! isso nem dum morto se aceita…
— Mas fica bonito, ou não?

terça-feira, 15 de agosto de 2006

Saudades de Agosto

— Caramba, de lágrima ao canto do olho?
— Lágrima?! Estou para aqui numa choradeira pegada…
— ?!
— Saudades de Agosto… saudades de Agosto
— De Agosto?!
— Não, homem, de Agosto. Por uns tempos, aquilo foi meu…

quinta-feira, 3 de agosto de 2006

Desconcerto

— Olha a mensagem que me chegou…
— Lê alto, se fazes favor, não trouxe os óculos.
— Óculos? Desde quando precisas de óculos para ler?
— Lê, homem, lê lá a mensagem, não divirjas…
— Está bem, mas ainda me vais explicar direitinho isso dos óculos. Diz isto: Os mortos não são coisa com que se brinque. É por essas e por outras que o mundo está como está. Como se os mortos falassem e nós acreditássemos nisso! Deve ser intelectual, não? Pois a minha mulher deve-lhe achar graça mas eu não! Eu sou um engenheiro e católico. O meu amigo é daqueles que merecem que se fale de si no abaixoacultura. Ainda por cima com nome de comunista: Grouxo, toda a gente sabe que foi o russo que descobriu o marxismo e o levou por aí fora, a todo o mundo. São demasiadas coisas más num só blog! Redima-se e leia coisas de nível. Isso faz-lhe mal, amigo. Redima-se. Que me dizes a isto?
— Que desconcerto... Devia ter sido a mulher a escrever-te.

domingo, 30 de julho de 2006

Diálogo de mortos


— Encontrei ontem o Cornélio.
— O Penna?
— Esse mesmo, mas ia jovial.
— Ah sim?
— Diz que lhe saiu agora a mais bela menina morta… Que raio queria ele dizer?
— Sei lá eu… mas olha que meninas mortas é o que não falta por aí.
— Mas era a mais bela, ele disse que era a mais bela…
— Então deve ser mesmo, só pode ser mesmo. A mais bela...

terça-feira, 18 de julho de 2006

Mas qual?

Mas então... se somos dois, um de nós pode estar vivo, não?

segunda-feira, 17 de julho de 2006

Cisão

Ficámos dois, mas não foi uma cisão, foi um golpe: de estado de espírito, de asa, e de golpe. Mas não uma cisão. Os mortos não se perdem em divergências, recriminações, retaliações, golpes de poder para o poder e mais poder... Não, não foi uma cisão: mas ficámos dois!

Golpe

Vou dar um golpe de estado de espírito e livrar-me dos vivos. Era tempo! e eles que me perdoem. Se puderem.

domingo, 16 de julho de 2006

O gene operador

Os genes equiparam-se ao nome próprio num ponto preciso: recebem-se sem meio de escolha, sem deliberação, sem aceitação. Um sujeito mal se precata, e já não se livra deles. Nunca mais. E dado que se recebem com a informação de que sobreviverão à nossa morte, ou porque por sua vez se transmitem ou porque se fixam sem corpo na memória ou lá o que é — recebem-se anunciando a morte, de antemão e em definitivo. Assim, por exemplo: Tu, rapazito, acabadito de nascer, serás chamado Vicente, e sempre assim serás chamado, mesmo depois de morto, e aliás, vais ser chamado, e Vicente, para que possas morrer sem que te esqueçam e os que ficam possam falar de ti ou mesmo chamar-te quando não estiveres presente, ou porque foste comprar cigarros, ou porque morreste mesmo, Vicente. Entretanto, é melhor que não fumes, se não quiseres morrer cedo. Há casos de cancro de pulmão na família…? O avô? Diacho!… um sujeito mal se precata, e já não se livra deles. Dos avós, nunca, dos cigarros, já é possível. Não fumes, Vicente.

sexta-feira, 14 de julho de 2006

Voilá!

Vivemos numa cultura em que os critérios do ser humano, e portanto de participação na comunicação, estão fixados de forma demasiado rígida. Nem incubos, nem súcubos, nem anjos, nem demónios se admitem hoje como interlocutores de pleno direito. Não acho isto nada bem.

Boris Groys

terça-feira, 11 de julho de 2006

Juntar, espalhar as cinzas

…ah sei , talvez haja muitas vantagens, sim, muitas vantagens em estar vivo. Sempre se faz tanta coisa, não é? E simples, coisas simples. Tomar uma cerveja na praia ou, quem sabe, um sumo, brincar com uma criança ou tê-la a dormir nos braços, ouvir um amigo que precisa de ser ouvido, acordar feliz quando não parecia possível, combinar um encontro ou ver um filme na companhia certa. Um filme, sim. Um daqueles filmes que se vão ver sem fazer ideia do que sejam, pura surpresa, pode ser tudo, pode ser um filme chinês, quase chinês, chinês entre outras coisas, pode ser um melodrama, quase um melodrama, pode chamar-se qualquer coisa como «A Filha do Botânico», pode ser que no fim haja alguém ao lado que chora, pode ser que no fim haja uma carta e alguém que na carta pede, antes de morrer, que lhe misturem as cinzas com as cinzas da pessoa amada que também vai morrer, pode ser que peça para espalharem as cinzas misturadas nas águas do lago e para quê, para que assim, calcule-se, «possam viver tranquilas», ambas, mortas, em cinzas, ambas, «possam viver tranquilas». Ah sei

segunda-feira, 3 de julho de 2006

Política da imortalidade

Conversa interessante, não? Quando deixa de haver garantia de imortalidade, abre-se o espaço para a política da imortalidade — isto, claro, desde que não se renuncie à imortalidade. Em tempos saudosos, o não menos saudoso Osvaldo Silvestre elucubrava muito a respeito do cânone: noites a fio, coitado. Que será feito dele, a propósito…? Eu então escarnecia, hoje chego a arrepender-me. Um dia, ele lembrar-se-á ou não, observei-lhe que achava nociva a preocupação com o cânone, coisa importada e mais própria de agentes funerários. A comparação era imprestável, agora é que me ocorre a boa: uma família enorme, muito grande mesmo, sofre mortandade súbita de velhos e novos, dezenas de mortos num espaço curto, digamos uma semana: sem recursos, vêem-se os sobreviventes forçados a escolher entre os mortos quais serão enterrados devidamente e quais deitados à vala comum, ou seja, quais serão lembrados, quais serão esquecidos. Isso é o cânone, valha-nos Deus! nada mais do que obrigar os vivos a lembrarem alguns mortos para que não sejam esquecidos. Alguém tem de escolher os mortos e obrigar os vivos a recordá-los. E quando daqui olho as discussões minutíssimas que o assunto suscita, invariavelmente em volta dos programas escolares, fico com a impressão de que certos defensores dos "clássicos" militam na esperança de que um ou outro morto um dia regresse momentaneamente para lhes agradecer. Havia de ter graça.

Política da imortalidade

Vivemos assim nessa dicotomia: queremos matar os mortos célebres, mas queremos simultaneamente que eles nos reconheçam e não conseguimos nem uma coisa nem outra. Não temos qualquer hipótese contra a imortalidade dos mortos.

Boris Groys

Política da imortalidade

Vivemos assim nessa dicotomia: queremos matar os mortos célebres, mas queremos simultaneamente que eles nos reconheçam e não conseguimos nem uma coisa nem outra. Contra a imortalidade dos mortos, não temos qualquer hipótese.

Boris Groys

Política da imortalidade

Não temos a mínima hipótese contra a imortalidade dos mortos.

Boris Groys

Política da imortalidade

Contra a imortalidade dos mortos, não temos a mínima hipótese.

Boris Groys

domingo, 2 de julho de 2006

quinta-feira, 29 de junho de 2006

Cúmplices ou rivais?

Desconfio que tenho exagerado as vantagens da morte. Compreensível, parece-me: nesta condição de morto, o decisivo é aceitar — e sempre se aceita melhor dourando a pílula. Quem engoliria a pílula se não fosse dourada? Hein? Mas vai nisso algum exagero, porque os inconvenientes saltam à cara aqui e ali. Hoje, por exemplo, o que eu não daria para ter um corpo, corpito, fraco e magro que fosse, para sentar o cu numa das cadeiras do auditório da Casa Fernando Pessoa onde se irá tentar responder à pergunta “Blogues e livros: cúmplices ou rivais?” Um dos tentadores é o grande crítico, o mesmo sim, o mesmo que há poucas semanas declarou que nunca lia blogues e que assim mesmo é apresentado: “que diz não ler blogues”. Não hei-de ter uma curiosidade enorme de saber o que poderá ele então dizer de relevante? O que assim se prova é que a curiosidade é imaterial, incorporal, puramente espiritual, mas não transportável. E agora que reparo nesta conclusão, reparo também e de seguida que já ganhei com o debate qualquer coisa que talvez não ganhasse se lá pudesse ir. Além de que, entretanto, o Eduardo Pitta sempre há-de contar alguma coisita... Não, volto ao princípio, há muita vantagem em estar morto.

sábado, 24 de junho de 2006

A um crítico desgraçado

Se insistem em continuar a escrever que a crítica morreu, ainda perco a paciência: eu morri e não estou menos activo. Muita coisa morreu, que nem por isso deixa de ter futuro. Muita coisa não tem futuro, que nem por isso morre. Etc. O desgraçado Augusto M. Seabra anda há semanas a esbracejar em folhetins no Público: por causa da crítica. Digo “desgraçado” porque, não tendo uma prosa particularmente persuasiva, parece antes destinado a sacrificar-se para comprovar o que tenta descrever. Já aconteceu. O ex-companheiro de crítica Prado Coelho refere-o assim, hoje, no mesmo jornal: “Pessoas amigas dizem-me que Augusto M. Seabra se inquieta, em texto recente, profundamente sobre a situação da crítica — e para ele tal prática chegou ao fim. Não li. Devia estar em viagem. Mas sou capaz de imaginar. Como sempre no Augusto, o estilo é acusatório: ele pensa que a culpa é das pessoas, mais ou menos vendidas ao sistema.” E despeja-lhe em cima o costumeiro balde de juízos definitivos, com que Prado Coelho, reputando-se juiz supremo das almas que em tempos elegeu (e até das outras!), decreta a irrelevância deste ou daquele. Valeu a pena, ó desgraçado Seabra, esforçares-te nos folhetins, se o outro tos desqualifica sem precisar de os ler? Não será culpa tua se um homem reconhecidamente desprovido de imaginação alcança imaginar artigos teus que não leu e até os descreve como se imaginação e realidade coincidissem? “Como sempre no Augusto, o estilo é acusatório…” Nota, ó desgraçado, que ele não escreve “deve ser acusatório”, escreve “é acusatório”, porque nem duvida de que esteja certo na sua imaginação: não será culpa tua? Pensa nisso, desgraçado, pensa nisso. Depois, podes respirar fundo e talvez queiras despedir-te do jornal em que colaboras… quem sabe, quem sabe se seria boa solução. Não, não seria, porque pressuporia que as regras habituais estariam ainda em vigor, ou seja, que a crítica não morreu. Olha, chega aqui e imagina por tua vez isto que aqui conto: algum editor ou até o director, suspendia a publicação da prosa de Prado Coelho, fazia-lhe notar que, ao menos a respeito de um outro colaborador, não haveria ele de falar confessando de entrada que não leu, e depois remetia-lhe pelo correio, por fax ou por e-mail, competente cópia dos textos de Augusto M. Seabra. Sim, senhor, havia de ser bonito… não achas, ó desgraçado? Por outro lado, pode bem ser que Prado Coelho, amigo da rapaziada, esteja apenas a fornecer modelos aos jovens estudantes que agora prestam provas nos exames. De Português, por exemplo, respondendo assim: “Do Eça de Queirós não li nada. Devia estar na Internet. Mas sou capaz de imaginar. Como sempre no Eça, o estilo é realista… etc.” Nada como ser um grande crítico para provar, pelo exemplo, que a crítica nunca morrerá. (Esclareço que "grande crítico" designa aqui o Prado Coelho, não tu, desgraçado Seabra, não tu.)

terça-feira, 30 de maio de 2006

Lincando Manuel Bandeira, 3

Madrigal tão engraçadinho

Teresa, você é a coisa mais bonita que eu já vi até hoje na minha vida, inclusive o porquinho-da-índia que me deram quando eu tinha seis anos.

Manuel Bandeira, Libertinagem, 1930.

Lincando Manuel Bandeira, 2

Porquinho-da-índia

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…

— O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.


Manuel Bandeira, Libertinagem, 1930.

segunda-feira, 29 de maio de 2006

Lincando Manuel Bandeira, 1

Teresa


A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

Manuel Bandeira, Libertinagem, 1930.

São Paulo, Brasil, há muito tempo

O "adeus" de Teresa

A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus
E amamos juntos E depois na sala
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala

E ela, corando, murmurou-me: "adeus."
Uma noite entreabriu-se um reposteiro. . .
E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus
Era eu... Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa

E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"

Passaram tempos séc'los de delírio
Prazeres divinais gozos do Empíreo
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse "Voltarei! descansa!. . . "
Ela, chorando mais que uma criança,

Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"

Quando voltei era o palácio em festa!
E a voz d'Ela e de um homem lá na orquestra
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei! Ela me olhou branca surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!

E ela arquejando murmurou-me: "adeus!"

Castro Alves
São Paulo, 28 de Agosto de 1868

quarta-feira, 17 de maio de 2006

São Paulo, Brasil, por enquanto

Uma desvantagem de estar morto é a redução drástica do acesso à informação. Não me esqueci de ter dito que a Internet é universal e gratuita; mas funciona numa só direcção, de lá para cá: não posso perguntar. Numa palavra, não tenho interlocutor, estou só! pobre de mim!… Desculpem, já me recompus, não era isto que queria dizer. Queria dizer antes que se fica sem saber nada do que se passa no Brasil lendo os jornais portugueses: nem se tem a quem perguntar. (Os que morreram por estes dias em São Paulo e aqui chegam às carradas pouco sabem ou até nada entendem do que se passa.) Ora, se eu estivesse vivo, se ademais fosse brasileiro, se além disso vivesse em São Paulo e se, cúmulo da excelência, me chamasse Alcir, haveria de escrever a um amigo português qualquer coisa como isto:

Pois é, estava mesmo para lhe contar. Isto aqui é guerra. Mudei-me para o centro, como contei, para obter um pouco mais tranqüilidade. De fato, aqui é mais policiado do que lá no brejo. Mas como ia imaginar que agora atacariam os policiais? A dois quarteirões de casa há um posto de polícia. As ruas foram interditadas. As sirenes tocaram a noite toda durante todo o fim de semana. Dia das mães sangrento. Foram 251 ataques e 115 mortos até há pouco. Há muitos feridos. Mas o mais incrível é o seguinte: sabe por que a guerra foi suspensa hoje? Porque a cúpula da polícia foi ao presídio onde está preso o chefe do PCC (o grupo dos criminosos desta rebelião — mas há muitas outras), o famoso Marcola, e fez um acordo com ele! Foi o chefão da bandidagem que ordenou o cessar-fogo! Vai ter direito a vários privilégios. De lá, do presídio onde está (e ao que dizem a ler Dante…) comanda o cangaço. E a reação da polícia miúda, que leva bala nas ruas e favelas onde mora, não é menos impressionante: como retaliação matam as mães, filhos e parentes dos bandidos amotinados.
Isso aqui já acabou, meu caro. Não é figura de amplificação. Vai demorar para perceberem, mas já acabou. Qualquer idéia sequer de solução por aqui é mentirosa e cínica. O Lula é um desastre tão imenso que dói no osso. Está cada dia mais louco. Fez um pronunciamento há pouco dizendo que é pra não pensar nas coisas ruins. Logo mais vai dizer que o amor é lindo.
Abraço,
Alcir.

sexta-feira, 12 de maio de 2006

Espelhos

A crónica de hoje do nosso Manuel António Pina é extraordinária: um rosto para o medo, escreve ele. E termina perguntando aquilo sobre o rosto do desconhecido, da infância: se se pode chegar a vê-lo por arte da ciência, um dia. Pergunto-me eu se lhe terá ocorrido a história, que conta Guimarães Rosa, daquele homem que foi treinando para eliminar do respectivo reflexo no espelho todo o elemento acessório, espúrio, desprezível, até que primeiro chegou o dia em que viu nada, e depois o dia em que viu, sobressaindo do nada, "o ainda-nem-rosto — quase delineado apenas — mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só". "O espelho", justamente, é o título dessa história, das Primeiras Estórias. Ter-lhe-á ocorrido? ao nosso Manuel António Pina...

sexta-feira, 5 de maio de 2006

Qual?

Sim, qual... qual deles era eu? Não consigo perceber, tão-pouco lembrar-me... Há quanto tempo foi isto: onde estão elas, as flores de antanho?

quinta-feira, 4 de maio de 2006

Expedido para Manuel António Pina

Ao mesmo link, com respeito e admiração, correspondendo:

Mas, naquele raiar, ele sabia e achava: que a gente nunca pode apreciar, direito, mesmo, as coisas bonitas ou boas, que aconteciam. Às vezes, porque sobrevinham depressa ou inesperadamente, a gente nem estando arrumado. Ou esperadas, e então não tinham gosto de tão boas, eram só um arremedado grosseiro. Ou porque as outras coisas, as ruins, prosseguiam também, de lado e do outro, não deixando limpo lugar. Ou porque faltavam outras coisas, acontecidas em diferentes ocasiões, mas que careciam de formar junto com aquelas, para o completo. Ou porque, mesmo enquanto estavam acontecendo, a gente sabia que elas já estavam caminhando, para se acabar, roídas pelas horas, desmanchadas…


[João Guimarães Rosa, “Os cimos”, Primeiras estórias,1962.]

quarta-feira, 3 de maio de 2006

Crónica matinal, ainda

Está bem, cá está o link. Não o percam.

Crónica matinal

Um das boas coisas de estar morto é o acesso à Internet: universal e gratuito. E rápido. Não me perguntem porquê; não sei, já encontrei tudo assim, limito-me a usufruir, e apenas para ler blogues. Ficou-me o hábito… Aliás minto! Também leio sempre a crónica do Manuel António Pina na última página do Jornal de Notícias. Logo pela manhã (embora a delimitação do dia já não tenha sentido, gosto de preservar estes restos de sobrevivência). Precisam do link?

sexta-feira, 28 de abril de 2006

De senectute

Acreditem que nunca lamentei ter morrido. Bom, talvez tenha lamentado num certo momento de desespero, quando… melhor não contar. Quero é dizer que lamento agora, e muitíssimo, porque queria e não posso ir pôr o meu nome no abaixo-assinado que pede a permanência de João Bénard da Costa na direcção da Cinemateca. Parece que nem lá faz muita falta, que o objectivo terá sido atingido. Mas lamento. É que sou conservador, sabem? Defendo que o chefe que faz um bom trabalho deve permanecer a fazê-lo enquanto não se aborrecer ou, já agora, enquanto não morrer. Ainda hoje me entristece que Vitorino Magalhães Godinho não continue director da Biblioteca Nacional; ou João Palma-Ferreira, este não obstante ter morrido. Não acabo de entender que se imponha um limite de mandatos consecutivos ao Presidente da República: enquanto ele se sentir lá bem, e tudo estiver bem, não é justo que continue? Aliás, respeito os velhos, aprecio-os mesmo, e nem quero outra companhia, sobretudo aqui, do lado de cá do mistério. Ainda ontem um parvo dum modernista, um desses mortos prematuros que não deixaram exemplo nem obra, gritava que a cultura e as instituições culturais exigem renovação, que a renovação vem da juventude, que o progresso e a própria inteligência pedem mulheres e homens que sabem menos mas ousam mais, que aliás ousam mais porque sabem menos, que sabem menos mas aprendem mais, e por aí fora. Perguntei-lhe se arriscava entregar o governo das universidades à extrema juventude… Não respondeu, claro, porque não podia responder. Quem pode valorizar o ímpeto, o entusiasmo, a energia, a ousadia e a inexperiência da juventude e ignorar sem remorsos os queixumes de um velho que sabe, porque só ele pode saber, que só ele pode… poder? Quem? e sem remorsos? Hein?!

quinta-feira, 27 de abril de 2006

Correcção

Tive de voltar, porque devo corrigir certo adjectivo acolchetado ao flirt: pegado? e com alma penada? As almas penadas vão e vêm, perdidas, desorientadas, vagando: nada se pega bem nelas, quase nada pode ser pegado com elas. O quê?! Nada disto vos interessa? Estranho...

quarta-feira, 26 de abril de 2006

Da citação na vida quotidiana



Edward W. Said, que por acaso ainda ontem surpreendi em conversa animada com Arafat (imagino do que falariam…), começa um ensaio intitulado “The Return to Philology” com estas palavras desanimadoras: “Philology is just about the least with-it, least sexy, and most unmodern of any of the branches of learning associated with humanism, and it is the least likely to turn up in discussions about humanism’s relevance to life at the beginning of the twenty-first century.” Muito desanimadoras, estas palavras, mas se calhar muito falsas. Quem nunca iluminou uma situação dolorosa, até dilacerante — da vida, quero dizer —, com uma frase de livro, ali oportuna e por isso mesmo… hmmm… iluminadora, decerto não avalia a enorme importância de o fazer correctamente: a citação deve ser fiel, aliás fidelíssima, ou será intrusa, ineficaz e ao cabo enganadora. Pode chamar-se a esta exigência acribia, supostamente uma qualidade de filólogos. Aliás, quem me dera ter sido filólogo, em vez de simples logófilo.

Brio póstumo

Tenho andado em flirt pegado com uma alma penada que aí apareceu, rapariga simpática, morta muito prematuramente por um aneurisma, coitada! Estranho até que me tenha dado para fazer o que nunca apreciei em vida. Por convicção estabilizada, entenda-se, não me lastimo de falta de oportunidade, de jeito, ou assim, que não sou nenhum Pedro Mexia, valha-me Deus. Morto, mas brioso. Ou brioso porque morto? Realmente, agora que o escrevi reparo que há um brio póstumo, muito difundido, se calhar porque muito fácil, e que não é coisa só de mortos, antes pelo contrário: é de quem se sente orgulhoso de ter feito bem quando não se deu ou não lhe foi dada a oportunidade de ter feito mal. O brio póstumo, ó alma penada que por aí andas, dos sem escolha, das vítimas do aneurisma.

segunda-feira, 24 de abril de 2006

Prémio parasitífero

Pode ser coisa de defunto, e concedo até que seja ocioso, mas achei muito mal que Pacheco Pereira se pusesse a descrever a parasitagem da blogosfera como se lhe quisesse fundar a fisiologia. Até que dava um bom título de monografia: Fisiologia do comentador de blogues… Ou antes, seria um título tanto melhor quanto menos monografia trouxesse apensa. Pretendo sugerir que o título, para cumprir a finalidade parasitológica, não pode correr o risco de acabar parasitífero. De modo nenhum, percebem? de modo nenhum. E acabou, quero dizer — perdoem-me, parece que tartamudeio, estou desabituado —, deu nisso, alimentar os parasitas em vez de os descrever simplesmente. É que eles não gostam de ser descritos. Gostam mais de descrever os sítios onde se hospedam. Não gostam que os descrevam. Refiro-me aos comentadores de blogues, ou melhor, refiro-me, não a todos e a cada um, mas ao tipo, à figura, ao paradigma, à entidade abstracta. E isso não se refere sem que todos e cada um se sintam ofendidos. Se eu me referisse a todos e a cada um, diria que sim, que gostam que os descrevam, porém noutros termos, mais exclusivistas. Por exemplo: “Os comentadores de blogues são, em regra, uns grunhos, composto de idiotas e malvados. Excepto um, que leio sempre que encontro, que nunca é demais encontrar, o zeca totó, assim mesmo, tudo em minúsculas, irreverência contra os ditames da ortografa, e saudável que é a irreverência, etc.” Percebem? todos estúpidos menos aquele ali?! Em suma, acharia bem melhor que o mencionado Pacheco Pereira usasse do seu poder para conferir o prémio O Melhor Comentador da Blogosfera Portuguesa, a alargar ao Brasil em segunda edição. É claro que, para o vencedor, o prémio só podia ser um: o seu próprio blogue, livre de quaisquer encargos, com link perene no Abrupto. E com o mesmo Pacheco Pereira a escrever todos os posts, obviamente com nome suposto ou até nenhuma suposição de nome, anónimo, quero dizer. Ganda castigo! Que tal? Creio que contribuiria imensamente para elevar o nível dos comentários, se bem que talvez não baixasse a quantidade. Mas não é da quantidade que nasce a qualidade? Ou isto é um lugar-comum, ahh... parasitífero?

sexta-feira, 21 de abril de 2006

Libertar os mortos!

É tempo de libertar os mortos. É tempo de fazer pelos mortos o que tu fizeste pelas mulheres. É tempo de libertar os mortos da autoridade dos vivos, de deixar os mortos comportarem-se como muito bem entenderem e não como querem os vivos. Já pensaste nisso, Henrik? Até para além da vida tens uma obra de emancipação a realizar, a maior de quantas fizeste no mundo. Desejo-te sucesso e, se não acrescento que esta obra de emancipação dos mortos será aquela que verdadeiramente te dará imortalidade, é para não incorrer, também eu, no pecado da estupidez querendo implicar os mortos nos desejos dos vivos. Despacha-te, Henrik. Dá-nos depressa a ver a cena em que os mortos partem, batendo a porta da casa em que os vivos os tratavam como bonecos e se vão, noite adentro, para viver finalmente a sua vida de mortos.

Alberto Savinio, Vida de Henrik Ibsen (Lisboa, Cotovia, 2006, p. 72-73).

quarta-feira, 19 de abril de 2006

Encontro raro

Cruzei-me agora mesmo com um amigo que não via há anos…
— Tu aqui?!
— É verdade! vê lá a minha sorte, atropelado por um autocarro…
— Que maçada! Acontecia-te muito, não?
— Oh sim, muito, e durante anos. Desta vez é que excepcionalmente morri.

terça-feira, 18 de abril de 2006

Estado de excepção

Que maçada! Um homem não pode continuar morto e descansado. Vejam! agora, quer dizer, no sábado (mas para um morto o tempo não se mede assim), foi a Helena Matos, coitadinha! a tirar-me da serena tumba com esta espantosa frase (ainda o acórdão do Supremo, já se vê): “Desde já acrescento que não me choca que um pai ou uma mãe dêem excepcionalmente uma estalada num filho.” Que frase…! Lembrei-me, primeiro, de enviar à Sr.ª D.ª Dr.ª Helena Matos umas quantas variações para que, um dia podendo, me indicasse quais subscreveria: “Desde já acrescento que não me choca que um marido dê excepcionalmente uma estalada na mulher”; “desde já acrescento que não me choca que um patrão dê excepcionalmente uma estalada num empregado”; “desde já acrescento que não me choca que um polícia de trânsito dê excepcionalmente uma estalada num automobilista”; “desde já acrescento que não me choca que a Fátima Bonifácio dê excepcionalmente uma estalada no António Barreto”; “desde já acrescento que não me choca que o José Manuel Fernandes dê excepcionalmente uma estalada na Helena Matos”; e por aí fora. Estas sim, belas frases: excepcionalmente, nenhuma delas me choca. Estou morto, como já disse. O ponto, pelos vistos, é o advérbio de modo, vulgarizado pelo estilo queirosiano, o único que os jornalistas portugueses conhecem. Mais que estilo, porém: sendo excepcional, a estalada deixa de ser estalada ou, não chegando a tanto, é menos grave do que seria caso fosse normal, regular, frequente. É curioso, mas a imensa maioria dos perpetradores de crimes violentos praticam-nos excepcionalmente; e as vítimas mortais de crimes violentos, essas morrem todas excepcionalmente. A excepção absoluta. Não se diria, então, que justamente o excepcional choca? Mas, se o excepcional não choca, não será isso porque se julga normal, aceitável, legítimo, até natural? O que, por sua vez, ocorrerá porque, afinal, as crianças vivem subjugadas num permanente estado de excepção... Será isto?

Não, não deve ser. Isto são coisas de defunto, e defunto ocioso. Mas estou daqui a imaginar, deste lado do mistério, a Sr.ª D.ª Dr.ª Helena Matos vendo algures um adulto pregar uma estalada na criança que o acompanha. Coça o alto da cabeça. Franze o sobrolho. Determina-se, e interpela o sujeito: “— Essa estalada é uma entre várias, frequentes e regulares, ou tem carácter excepcional?” O sujeito, insolente, responde: “— Qual excepcional! ‘Tá-se a passar ou quê? É a quarta hoje, o raça do miúdo não pára quieto, é só à chapada…” E ela: “— Oh! então estou chocada!” Sim, deve ser isto mesmo.

quinta-feira, 13 de abril de 2006

O critério maligno

O abominável acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sobre a megera que em Setúbal torturava crianças deficientes tem merecido muita condenação: e até que a acho pouca. Realço o comentário de Manuel António Pina. Mas nunca faltam os palermas que se apressam a dizer “pois, pois, mas atenção, não se verguem ao politicamente correcto [tão monótona, tão cansativa, esta lengalenga estúpida contra o politicamente correcto, sempre na boca de espíritos estreitos a fazerem-se passar por irreverentes, apesar de apenas apostados na defesa do que for retrógrado], não deduzam daí que dar uma palmada [“amena e afectuosa”, como escrevia ontem um leitor nos comentários da edição on line do Público] é errado, não, senhor, não é, até deve ser dada, quando é precisa”, etc. São os discípulos dos juizes do Supremo, que diziam precisamente isso: que a abstenção de bater até pode ser “negligência educacional”.
E não deixou de comparecer o não menos abominável director do Público a dizer o que acha do assunto. Há muito que alguém devia ter interposto uma providência cautelar contra este execrável filodoxo… Pede ele que não se confunda como os juizes confundiram: bater em crianças deficientes é muito chato: podem não perceber o que se pretende com o castigo; já quanto às outras, seria disparatado classificar como maus tratos umas palmadas no rabo. Suponho que o director do Público não corre o risco de adoptar o mesmo critério com os seus jornalistas e passar a distribuir estaladas consoante as falhas, os erros, as faltas que pratiquem. Mesmo salvaguardando os deficientes... Na verdade, só com as crianças se aplica este critério maligno: a natureza da agressão é definida pelo agressor e pela sua intenção declarada ou suposta, sendo de todo irrelevante o modo como o agredido a recebe, percebe e sente. Com as crianças e com os condenados à morte…

segunda-feira, 3 de abril de 2006

Deus me livre...

... de continuar morto quando todos os outros felicitam o bomba inteligente pelo seu terceiro aniversário! Seria tão mesquinho, e afinal um intervalo na eternidade não custa (o que custa é chegar a horas, gaita!).

domingo, 19 de fevereiro de 2006

O regresso (verso)

— Parte-se-nos o coração, ver aquilo deserto, aqueles dois tristes ali abandonados…
— Acredito. Mas o ponto é: aprenderam a lição?
— Sim, sim, aprenderam, temos a certeza que aprenderam. Já podemos voltar, pode acreditar, podemos voltar.
— Está bem, seja. Os senhores conhecem-nos melhor do que eu. Vou deixar que voltem. Mas Deus me livre de ver que tudo volta ao mesmo, ouviram?
— Sim, sim, Deus nos livre, Deus nos livre.

O regresso (frente)

— Parte-se-nos o coração, ver aquilo deserto, aqueles dois tristes ali abandonados…
— Acredito. Mas o ponto é: aprenderam a lição?
— Sim, sim, aprendemos, queremos voltar, queremos voltar.
— Está bem, seja, vou deixar que voltem. Mas Deus me livre de ver que tudo volta ao mesmo, ouviram?
— Sim, sim, Deus nos livre, Deus nos livre.

sábado, 18 de fevereiro de 2006

É uma pena aquilo estar deserto

À atenção do Groucho,

Meu caro, não sei se reparou, mas alguém, no outro sítio, anda a iludir o Sr. Mourão, fazendo-se passar pelo meu caro. Houve para uma história de cartas falsas ou falsas cartas, falha-me aqui a certeza, e o Sr. Mourão, a quem pelos vistos também falhou a certeza, ligou para alguém a querer tirar a coisa a limpo. Alguém esse que respondeu por si, meu caro, e, em nome de outro, em seu nome, testemunhando por si, que é outro, ventriloquando a voz que é sua mas ainda assim não é propriamente sua, como nenhuma voz é propriamente de ninguém, usou dos poderes infinitos do simulacro para persuadir o Sr. Mourão de que falava consigo e de que ouvia de si, meu caro, a resposta capaz de diluir todas as dúvidas. Não duvido, cela va sans dire, que uma resposta efectivamente sua, inconfundivelmente sua, irremediavelmente sua, trouxesse o selo e a bênção da certeza aonde a certeza estava em falta. Não, o ponto onde o simulacro se denuncia é outro. Qual? Uma frase, uma frase , esta frase: «É uma pena aquilo estar deserto.» Foi a falha do mistificador. Imaginá-lo a si, meu caro, com pena de aquilo estar deserto. Ou talvez não fosse falha, talvez o impulso gracejador, a compulsão jocosa tenha tomado conta de quem, não porém sem pena de aquilo estar deserto, quis pôr à prova a destreza do Sr. Mourão na discriminação de identidades. Não lhe parece isto indício suficiente para o pôr no rasto do inescrupuloso ficcionista? E, com efeito, não deixa de ter graça essa malícia de supor o meu caro com pena de que aquilo esteja deserto. Que, aliás, não está, cela va aussi sans dire.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

Eco lógico























- Aquém não há quem!
- Nem além há!
- Sem ninguém, ninguém vem!
- Quem vem?
- Vem alguém sem ninguém.
- Vem?
- Sim, vem assim.
- Assim, com a água?
- Com a mágoa?
- Com o som do sim.
- O eco que ecoa.
- E canta.
- Eco ecoador.
- Cantador.
- Que coa.
- Os passos.
- A dor.
- Que bate contra a parede!
- Que cai no chão!
- E ressoa no tecto!
- A sala vazia.
- Quem está?
- Quem está lá?
- Aí, quem está?
- Quem está aí, está?
- E aquém?
- Quem?



-



















- Aquém não há quem!
- Nem além há!
- Sem ninguém, ninguém vem!
- Quem vem?
- Vem alguém sem ninguém.
- Vem?
- Sim, vem assim.
- Assim, com a água?
- Com a mágoa?
- Com o som do sim.
- O eco que ecoa.
- E canta.
- Eco ecoador.
- Cantador.
- Que coa.
- Os passos.
- A dor.
- Que bate contra a parede!
- Que cai no chão!
- E ressoa no tecto!
- A sala vazia.
- Quem está?
- Quem está lá?
- Aí, quem está?
- Quem está aí, está?
- E aquém?
- Quem?

Raspar de novo, nº8*




Bruce Nauman, Double Poke in the Eye II

* 11.000.000 de unidades de informação p/segundo, administrar as perdas.

Raspar de novo, nº7




Bruce Nauman, 100 Live and Die

Raspar de novo, nº6




Bruce Nauman, Five marching men

Raspar de novo, nº5





Bruce Nauman, The true artist helps the world...

Um tipo de raciocínio de que eu, por acaso pá, gosto à brava

Se A, num dia qualquer, defendeu que se deve poder vender livremente revistas pornográficas, então A está obrigado a fazer um banzé sempre que a polícia aparece a chatear o homenzinho daquele quiosque onde se vende revistas pornográficas, mesmo que a polícia o vá chatear por qualquer coisa que nem tenha nada a ver com revistas pornográficas1. Há ainda a pergunta típica que este tipo de raciocínio (de que eu gosto à bruta, repito) adora fazer: então e agora, Sr. A, agora não tem nada para dizer, Sr. A? Recentemente, o léxico deste tipo de raciocínio foi enriquecido com a noção de que A é umcruzado” da venda à balda de revistas pornográficas. Ou melhor, com o conceito, que isso então é que eu me pelo por ele, de que A é umcruzado” da rebaldaria.

1 Atenção, o gajo não tem de se chamar A nem a coisa tem de ser com revistas porno. O que interessa aqui é o tipo de raciocínio, a ver se me entendem. É a mesma coisa se o marmanjo se chamar S e tiver defendido a venda livre de fósforos com a cabeça do outro lado ou porta-chaves com a cara do coiso, como é que ele se chama? Esse.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

Afortunadamente

A propósito de imunidades da língua, notabilíssima expressão, vale sublinhar que nos blogues se escreve como se não escreve nos jornais. Melhor, quero eu dizer. É possível por exemplo, usar com graça e propósito o advérbio desafortunadamente.

Adivinha (reencaminhada )

(Posta-restante)

À superior atenção do Luís Mourão:

Num mundo superiormente letrado — seguramente aquele que se seguirá à aplicação, plena e eficaz, do chamado processo de Bolonha —, seria possível, perdão, será possível, aos almanaques de jornal ou aos blogues como este, inserirem desafios, na forma de adivinha, em vez de tópicos de reflexão:
Com que razão se pode afirmar que o sentido crítico do moderno entrou na literatura portuguesa quando Camilo, nas vésperas da publicação em livro do Crime do Padre Amaro e numa carta ao Visconde de Ouguela, disse de Eça: “Este rapaz vem tomar a vanguarda de todos os romancistas. É um admirável observador e conquanto faça pouco caso das imunidades da língua tem a arte de fazer admiráveis defeitos”?

(Note-se o termo vanguarda, mas não é por isso. Que me dizem a “imunidades” da língua? É possível fazer pouco caso delas e ainda assim fazer coisas admiráveis, sobretudo para quem fazia muito caso das “imunidades” da língua? E que arte é essa que produz coisas admiráveis pela violação, pela ignorância ou pelo desdém das “imunidades” da língua?)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

O herdeiro

Não, pensando melhor, ali, ainda ali , é que está o herdeiro. Aquele que vem depois e recebe, e estuda o que recebe, e continua o que recebe, e torna o que recebe melhor do que era antes de ele o receber, esse é que é o herdeiro. Esse.

Cum feris ferus


Palazzo del Bufalo, Roma.
A notícia é de ontem. Um pároco de Valência, catedrático de teologia, publicava num folheto dominical, Aleluya, o seguinte comentário: “Se quejaba una mujer en un periódico de la agresión que sufre la mitad de los humanos, o sea las mujeres, por parte de la otra mitad. Prueba de ello son las 63 mujeres muertas a manos de sus parejas en España en el año 2005. Sin negar que ello sea verdad, conviene hacer dos precisiones. Primera: nadie ha confesado qué hicieron las víctimas, que más de una vez provocan con su lengua. (El varón, generalmente, no pierde los estribos por dominio, sino por debilidad: no aguanta más y reacciona descargando su fuerza que aplasta a la provocadora). Queda además una 2ª observación: ¿No han tenido en cuenta que hubo en España, durante el mismo periodo, 85.000 abortos reconocidos? Por cada mujer muerta a manos de un hombre hubo 1.350 niños asesinados por voluntad de sus madres. Es peor”. Chama-se o dito padre Gonzalo Gironés. Como diria a Clara, como diria o Groucho: “arre, que asco!”. Soubemos, entretanto, que o arcebispo de Valência interrompeu “exercícios espirituais” em Xábia para acolher os participantes no III Congreso Internacional sobre Víctimas del Terrorismo. Aguardamos, ainda, que as mitras acudam com explicações, sempre o fazem, sempre argumentam terem sido mal interpretadas as suas palavras.

Foi má ideia

Eu tinha passado, a estas horas impróprias, pelo sítio do Francisco só para descontrair e eis senão quando... Foi má ideia.
É evidente que, ao contrário do que se profetizou, este assunto não vai morrer tão cedo. Está a morrer gente antes de morrer o assunto.
Atenção: só porque eu disse três vezes "morrer", não significa que esteja a pensar no embaixador do Irão em Lisboa. Não. Quando eu penso nele e na cambada a que ele pertence, penso, não três vezes na mesma palavra, mas em três palavras que em português é como se fosse só uma. Ah sim, eu também sei fazer contas!

Stelarc: a terceira mão


«Our actions and ideas are essentially determined by our physiology. We are at the limits of philosophy, not only because we are at the limits of language. Philosophy is fundamentally grounded in our physiology . . .»

terça-feira, 14 de fevereiro de 2006