segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Fim

— Dizemos que este ano não deixa saudades ou insistimos em que não há anos, nem dias, nem tempo, nem nada?
— Não, nada disso. Digamos antes que a suprema infelicidade ou a mais refinada maldição seria que este ano viesse a deixar saudades.

domingo, 5 de agosto de 2007

Rejubilemos!


— Rejubilamos?
— Sim, no mínimo rejubilamos. Eis o caso: a tradução da Poética de Aristóteles de Ana Maria Valente, que a Gulbenkian editou em 2004, teve agora segunda edição.
— Caramba! Percebe-se, é uma boa tradução.
— Mais que boa, é a primeira boa, e até por isso te enganas, porque não se percebe. Durante décadas usou-se por aí uma outra, má senão péssima.
— Então, toca a rejubilar. Quererá isso dizer que todo o país se vai tornar aristotélico?
— Sem dúvida! Não faltará muito para que os fotógrafos surpreendam o primeiro-ministro debruçado sobre o pequeno livrinho de capa azul.
— E o director do Público fará editoriais, falará de metabasis e hamartia
— De ethos e pathemata
— E apelará e conseguirá a Grande Catarse!
— Rejubilemos! É o fim!
— Finalmente, porra!

domingo, 8 de julho de 2007

Seca peritura


— Agora que chegou o Rorty…
— Sim, o que tem?
— Continuamos… interrompidos?
— Nós? Não, credo! nós somos perenes, contínuos, imperecíveis…
— Mas, e o blogue?
— Ora, o blogue é…
— Breve? caduco? descontinuado?
— Sim, e descontínuo, efémero, finito, extinguível, findável, frágil, perecedouro, perecível…
— Gosto sobretudo de perituro… E de mudadiço, lábil, infrequente…
— Perituro é óptimo: blogue perituro.
— Em maiúsculas e itálico, se faz favor: BLOGUE PERITURO.
— O metabloguismo é uma seca.
— Completa. O que nos vale é que é uma seca fugaz, interina, fugidia, ocasional, passadiça, impermanente, intercadente, interina, intermitente...
— Acho-a mais morredoura, mortal, perecedora…
— Peritura?
— Isso, peritura. O metabloguismo é uma seca peritura.

domingo, 10 de junho de 2007

Blogue interrompido

— As probabilidades de fuga são nulas. Esta coisa é… ontológica.
— Ontológica? Ser figura de blogue é coisa ontológica? Estar aqui preso é ontológico?
— Sim, pelo menos enquanto o blogue não acabar.
— O que já concluímos não acontecer, nem agora nem nunca.
— Nem nunca, dizes bem. Blogues de vivos podem acabar, ou melhor, podem ser interrompidos. O bloguista morre atropelado…
— Ou apaixona-se por uma polícia de trânsito e deixa de ter tempo para escrever…
— Ou a bloguista! não te esqueças das mulheres, a bloguista desenvolve uma fantasia em que o blogue cresce, cresce e acaba por dominar-lhe a vida, o trabalho, os amigos, o cão e o gato, e só fica fumo, cinza, lodo e coisa nenhuma, e ela coitada, desesperada, aturdida, paralisada…
— Vai às compras?
— Por exemplo. Mas eu ia dizer que deixa de escrever, deixa de postar, como eles dizem, perdão, como elas dizem. Deixa de postar.
— E o blogue passa a blogue interrompido.
— Bom nome para um blogue, não te parece? O blogue interrompido, ou apenas blogue interrompido…
— Não te esqueças dos itálicos.
— Outra ideia bem boa era alguém fingir que continuava um blogue deixado em estado de interrupção pela bloguista. Já agora, um cão. O cão da bloguista começava a postar depois de a dona sair de casa. E punha-lhe em público a vida íntima toda…
— Toda?! Como pode o cão saber-lhe a vida íntima toda? Nem ela sabe, que diabo!
— Ficção, homem! Acaso os cães escrevem blogues?
— Mas qual é a vantagem de uma ficção assente numa ilusão estúpida?
— O cão escrever não é estúpido e conhecer a vida íntima da dona já é?
— Sim, é, muito estúpido mesmo. E mesquinho. Esse cão é a prosopopeia do homem vulgar.Homem vivo, claro, não falo de nós dois.
— Hmm… entendo, entendo, não falas de nós dois… e como poderias tu falar de nós dois? Acaso sabes quem somos?
— Não interessa. Li ontem que o Michel Foucault tem dito que não se trata de saber quem somos mas de recusar quem somos. Não me esqueci do itálico e até sei dizer isto em francês, imagina! tanto gostei da frase…
— É muito boa, completamente anti-edipiana.
— Calma, que isso dá outro post.

sábado, 9 de junho de 2007

Longa vida aos espirituosos!


After all, one can only say something if one has learned to talk.

Wittgenstein

Sim, Bartleby


Às vezes perde-se muito tempo. Ou passamos por essa ilusão; a de perder muito tempo, quero dizer. Deverá haver três milhões de página escritas sobre a ligação entre literatura e psicanálise; a conjunção "e", aliás, alcançou mesmo instituir uma disciplina académica: Literatura e Psicanálise. Vai-se a ver, no entanto, e o único ponto em que uma e outra se cruzam se calhar escapou. Digamos que é afinal o mais difícil, pelo menos não muito ou quase nada praticado: dar atenção a quem fala, ouvir numa história menos a história propriamente dita do que aquele que a conta, o que ele deixa de fora, o que deixa escapar sem querer, os detritos, as zonas de incoerência, os pequenos lapsos. Ter ouvido para os narradores, para a voz que fala. (Tudo muito metafórico, porque na literatura não há rigorosamente vozes ou pelo menos ninguém que fale. Algo foi inscrito antes de chegarmos, e não foi inscrito para nós — e é tudo.)

*

Bartleby: como entender o prestígio da estranha figura — decerto justificado — livre daquele que a deu a conhecer? Aquele que conta é justamente quem não sabe, quem não entendeu, quem nunca chegou a entender. Mas decidiu: primeiro amparar Bartleby, depois contar a partir dessa falta irremediável. A importância do narrador, ao ouvinte atento, supera a de Bartleby: porque esteve perante o inaceitável e o ininteligível, acolheu o primeiro e reconheceu o segundo. É isso, e apenas isso, ou decisivamente isso, que radicalmente singulariza esta estranha história.

*

Há um sinal dado no início, a propósito de Turkey, o escrivão que se tornava praticamente imprestável a partir do meio-dia e que o patrão por isso mesmo quis dispensar da parte da tarde. O homem resistiu, o outro percebeu: "At all events, I saw that go he would not. So I made up my mind to let him stay… " Resolver-se ao que o outro de qualquer modo faria? Sim! porque não se trata de aceitação passiva, mas de activa renúncia à violência e consequentemente recusa de confundir decisão, acção, iniciativa, com imposição, força, violência. É um modo de preservar a autonomia perante a irredutibilidade do outro. Mas, no caso de Turkey, a irredutibilidade entende-se e as suas consequências são, mais que previsíveis, familiares. Com Bartleby, o narrador será confrontado com a ininteligibilidade, e aquilo que o vai definir será a capacidade de renunciar à violência quando nada lhe resta senão reconhecer a ininteligibilidade. Uma forma também ela anómala de preferir.

 
*

A anomalia é aceitar, uma missão, um apelo, um chamamento, qualquer coisa assim, cujo sentido lhe escapa mas se lhe impõe incontornável: "Yes, Bartleby, stay there behind your screen, thought I; I shall persecute you no more; you are harmless and noiseless as any of these old chairs; in short, I never feel so private as when I know you are here. At last I see it, I feel it; I penetrate to the predestinated purpose of my life. I am content. Others may have loftier parts to enact; but my mission in this world, Bartleby, is to furnish you with office-room for such period as you may see fit to remain."

É menos relevante lembrar que ele permanece fiel a esta decisão, ainda quando abandona o escritório, do que lembrar que com ela sobreviveu bem ao ressentimento, à fraqueza de se sentir fraco, ao medo de ter perdido a coragem, ao ódio e à violência. Se hoje necessariamente ( sim, necessariamente) dizemos "Sim, Bartleby", é por causa de tudo isso.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Os espirituosos não têm espiritualidade nenhuma (nota sobre as mudanças climáticas)

As pessoas morrem, os blogues não. Posto isto, que urgia sublinhar, trato de outro assunto: uma pessoa especialmente estúpida descuidou-se há dias na revelação de que confunde os espirituosos com os espirituais, acepção new age. Por vezes, em certas sitcoms, que agora se identificam pela "temporada" (extraordinário conceito!), aparece uma personagenzita que diz: "Eu considero-me uma pessoa muito espiritual…" Olha-se para o lado e lá está um pauzito de incenso a queimar, uma manta de riscas desbotadas e na parede uma fotografia dum indiano qualquer a pedir paz e fraternidade e sobretudo amor livre, muito livre. As pessoas espirituais, porém, em regra, não têm graça nenhuma. Não são espirituosas. Já os espirituosos par contre têm muita graça: mas nenhuma espiritualidade. Enjoam o incenso, dos indianos só retiveram o tal Gandhi, que de resto abominam ou de quem, quando menos, escarnecem.
Por isso as pessoas tendem a ser espirituais: porque morrem. E por isso os blogues são antes espirituosos que espirituais: porque não morrem.

*

Até aqui, nada de promissor. Agora a pergunta inesperada: o que dizem espirituosos e espirituais das mudanças do clima?


*

A resposta, que aliás suscita de antemão a pergunta, encontra-se na primeira página de A Sereia, romance que Camilo publicou em 1865 — e devo sublinhar: 1865 —, Em Casa da Viúva Moré, Editora. Cito a primeira linha, primeiro parágrafo:

"Estamos no dia 15 de Maio de 1762."

(Houve um tempo em que seria possível um seminário anual sobre esta frase. Mais vasta e mais promissora do que aquela que fala da tal marquesa que sai às cinco horas ou coisa que o valha. Aqui é o dia todo, coisa mais espaçosa, e estamos todos nesse dia, coisa democrática, ao alcance de qualquer um, não apenas de aristocratas que saem de casa sabe-se lá para onde. A ficção democrática é o romance, ou o romanesco, como devem preferir as pessoas honestas, se e quando espirituosas.)
Depois vem a segunda frase, começo do segundo parágrafo: "Naquele tempo, os dias de Maio, no Porto, eram temperados, alegres, perfumados, encantadores." E logo a seguir a frase decisiva: "A primavera, há cem anos, aparecia quando o calendário a dava." É preciso resumir: cem anos antes, os portuenses confiavam na primavera e no calendário, ou só no calendário e gozavam a primavera, não saíam de casa às cinco da tarde com um casaco de reserva precavendo-se contra o frio das sete: "nem o peralta portuense levava escondido na copa do chapéu o cache-nez com que, ao anoitecer, havia de resguardar as orelhas da nortada cortante."
Queixa-se ele do frio, portanto. Arrefecimento nocturno, acentuado arrefecimento nocturno impróprio da estação primaveril e também do Porto. Mas queixa-se mais, ou queixa-se mais longe, confrontando o tempo em que as pessoas confiavam — e os "sábios podiam sem receio responsabilizar-se pela pontualidade das estações" — com o tempo coevo em que algo se desconcertou: "os sistemas das regiões altas". E chega então a parte importante, com sublinhados cá muito meus:

"As pessoas muito espirituais receiam que este desconcerto venha a desfechar em acabamento do mundo; outras, mais racionalistas, pretendem que a desordem das estações proceda de causas que, volvido determinado período, cessem de existir. Ninguém se lembrou ainda de conjecturar que as vaporações constantes das fornalhas e o fluido eléctrico de que o ambiente está saturado possam ter influído na substância dos sólidos e fluidos componentes do maquinismo celeste, alterando-lhes o modo de actuarem sobre a terra. Se algum sábio estivesse de pachorra para demonstrar a profundeza desta minha hipótese original, ficávamos convencidos nós de que a civilização do fumo e a dos arames eléctricos, afinal, acabariam de todo com a primavera. Em compensação, os engenhosos destruidores das nossas alegrias de Maio, haviam de inventar uns fogões cómodos para nosso uso em Julho."

*

Não sei se as pessoas se dão conta do que ali está escrito: nada menos do que a previsão do efeito de estufa ao contrário. A versão original, primeira, pioneira, da teoria do aquecimento global — a explicar o acentuado arrefecimento nocturno durante a primavera do Porto. É isto, são páginas destas que fazem a grandeza dum romancista: o serem muitíssimo do agrado das pessoas muito espirituosas. Já as muito espirituais, fiéis à condição maldita, receiam sempre que o desconcerto, qualquer que seja, desfeche em acabamento dos blogues. Mas este blogue, pelo menos, não acaba.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Longa vida aos espirituosos!*








When I was younger I could remember anything, whether it happened or not.

Mark Twain


*O blogue continua!


Caprichos


— Só não acabo de entender a vantagem de nos manterem mortos. Digamos que foi um capricho, a nossa morte. Aceito bem os caprichos, aliás gosto de caprichos…
— Tu mesmo és particularmente caprichoso.
— Achas? Nunca me disseram isso…! És o primeiro… em que te baseias? e sou caprichoso porquê? a que caprichos te referes? quando foi o último capricho que…
— Pronto, pronto, não és caprichoso. Continua.
— Melhor, assim. Com caprichos e caprichosos, os blogues acabam, e não quero que venham a acusar-me de ter acabado com este. A morte, meu caro, a morte. Porquê manter-nos mortos? Sabes? Atinas com a explicação?
— Sim, atino. Trata-se apenas de ilustrar um preceito. Um vulgar preceito. Enfim, convenhamos, não tão vulgar assim.
— Sim…
— Um blogue é escrito, certo? Ora a escrita está ligada à morte. Aí tens.
— Só isso?!
— Parece-te pouco? É tudo, o cerne, o osso da coisa, o essencial. A morte, meu caro. Podes orgulhar-te de representar o cerne, o osso, o essencial da escrita.
— Mas eu não escrevo nada…!
— Por isso é que este blogue mais dia menos dia acaba mesmo.

terça-feira, 5 de junho de 2007

Longa vida às espirituosas!





— Uma oportunidade desperdiçada. É mesmo o teu género.
— Mas tu dás-me outra, não?
— Sim, claro. É o meu género.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Agora a parte que não é reconfortante

— Continuo a pensar naquilo, não consigo libertar-me daquelas frases, a repetirem-se, a repetirem-se doidas…
— Mas qual é o problema, afinal? Há coisas piores…
— Haverá? Haverá? És capaz de dizer isso assim tranquilamente, como quem fala da chuva ou dalguma eleição municipal? És?!
— Pelos vistos, tudo indica que sim. Qual é ao certo o problema?
— Tenho de explicar? Primeiro, descobrimos que vivemos num blogue. Somos mortos num blogue.
— Sim, já sei, o efeito ou a síndroma Buzz Lightyear. Pensei que tinhas ultrapassado isso…
— E ultrapassei, claramente, sem restos, sem resquícios, sem vestígios, sem traumas…
— Afortunado, muito afortunado.
— Pois, pois, mas agora, sem mais nem menos, descubro que, de uma forma ou de outra, estamos sempre dentro de uma história e que as histórias, e essa é que é a grande merda, pertencem sempre a um género qualquer. Inexoravelmente.
— Não descobriste, aprendeste. Mas pouco, aprendeste pouco. Um "pouco" importante, é certo: aprendeste a necessidade de redescrever o banal "todos temos uma história" num mais acutilante "todos pertencemos a uma história de certo género".
— E isso é pouco? Estou destroçado, porra!...
— Sem razão, porque essa é a parte reconfortante, afinal. A destroçante, como dizes, é que, dada a inexorabilidade do género, que não se define pela nossa historinha, nem se incomoda com ela, nenhum de nós pode escolher o género da história em que está.
— Não vais dizer que é por isso, exactamente por isso que este blogue não acaba?
— Como é que adivinhaste?! Essa é a conclusão lógica, sim.

sábado, 2 de junho de 2007

E agora?!

— Sabias que isto estava escrito em qualquer sítio?
One of the consequences of privileging Oedipus, as Freud did, is that the psychoanalyst then assumes that the patient's real genre is tragedy, and that is real project is knowledge or understanding. It is, though, part of the patient's predicament that he is trapped in a specific genre, that he is unable to move freely among the genres available; his farces, say, are all experienced as tragedies.*
— Sim, sabia. No mesmo sítio onde encontras isto:
With the Oedipus story as a foundation — Oedipus as a kind of early scientific hero —psychoanalysis could be the science of the forbidden, of the unacceptable; and the neurotic could be a failed scientist; with Freud´s rediscovery of Oedipus, in fact, a new version of the good life was being described. In Freud's view — and this is one of his fundamental models for life — the criminal must become a scientist. Crime doesn't pay, but knowledge does.*
— E agora…?
— Tem calma, que se arranja alguma maneira… tem calma.


*Adam Phillips, Terrors and Experts, 1995

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Renunciar ao resto?

I am a rather elderly man. The nature of my avocations for the last thirty years has brought me into more than ordinary contact with what would seem an interesting and somewhat singular set of men, of whom as yet nothing that I know of has ever been written: I mean the law-copyists or scriveners. I have known very many of them, professionally and privately, and if I pleased, could relate divers histories, at which good-natured gentlemen might smile, and sentimental souls might weep. But I waive the biographies of all other scriveners for a few passages in the life of Bartleby, who was a scrivener of the strangest I ever saw or heard of. While of other law-copyists I might write the complete life, of Bartleby nothing of that sort can be done. I believe that no materials exist for a full and satisfactory biography of this man. It is an irreparable loss to literature. Bartleby was one of those beings of whom nothing is ascertainable, except from the original sources, and in his case those are very small. What my own astonished eyes saw of Bartleby, that is all I know of him, except, indeed, one vague report which will appear in the sequel.

Herman Melville, Bartleby (1853)

[Aqui chegados, fim do primeiro parágrafo, ainda vamos a tempo de abandonar o livro?]

quinta-feira, 31 de maio de 2007

Intervalo

Tenho estado ocupado com um assunto. Diz-se assim? "ocupado com um assunto"? Se calhar quando não se quer declarar o mesmo assunto, ocultá-lo de curiosos, de gente que pergunta: "O que estás a fazer?" Ou: "Onde tens andado, que não apareces há que tempos?" (Que bem ali fica a vírgula antes do "que" explicativo… diz-se assim? "explicativo"? Ou será causal, consecutivo…?) Adiante que eu sei qual é o assunto, e até digo qual é o assunto: coligir um pequeno corpo de textos literários sobre o tema do abandono. Mais particularmente: textos onde se contam histórias de gente que abandona o que não consegue interpretar. Gente que desiste de interpretar e vai embora. Gente que vai embora sem desistir de interpretar. E gente que vai embora, que abandona, aquilo mesmo que se dá sem esforço, de graça, oferecido em meio duma estrada pedregosa. (A máquina do mundo de Drummond é isto, como sabem: um sujeito cansado de buscar encolhe os ombros e segue adiante quando máquina do mundo se abre à sua frente deixando ver a causa primeira de todas as coisas.) Não sei, porém, se isto é abandono. Deve poder dizer-se assim, uma atitude de abandono: o sujeito abandona-se, e segue. Há um abandono passivo, e há um abandono activo. Este segundo é deixar, largar de vez, partir, ir embora. O outro, pronominal, abandonar-se, pode ser o oposto: entregar-se, deixar-se ir, render-se, ceder. O enigma que pede decifração depende em boa medida, senão em toda, do sujeito que se abandona; já escapar ao enigma que exige decifração é coisa que exige abandono. Passivo e activo, portanto. Mas isto pouco ajuda à tal colecção de textos sobre o abandono. O único que me ocorre agora é Bartleby. O advogado que conta a história abandona Bartleby no escritório depois de ter decidido que ele lhe estava destinado e que era sua missão na vida acolhê-lo ali, naquele escritório. Por isso, num sentido muito preciso, não abandonar Bartleby implica, para o advogado, abandonar o próprio escritório: e deixá-lo entregue a Bartleby, que nele se abandona até que alguém chega e o expulsa de vez. Quem leu sabe que abandonar o escritório significa, para o advogado, abandonar o esforço de interpretar Bartleby. E vice-versa. Não é possível ocupar o mesmo espaço e renunciar à interpretação. E não é possível interpretar. É preciso ir embora. Largar de vez. Ir embora. Abandonar para pôr termo à compulsão interpretativa. Enfim, isto muito resumido. Só para dizer que tenho andado ocupado com este assunto, pelo que a história do blogue que acabou mas com funcionários do ministério das finanças terá de ficar para outro dia. Isto, claro, se o blogue não acabar antes.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

Amanhã: a mesma história dum blogue que acabou mas com funcionários do ministério das finanças

História dum blogue que acabou

Agora vamos supor um mundo bizarro em que os professores de humanidades estivessem, por qualquer motivo insondável, equiparados aos judeus sob o nazismo. Forças especiais notavelmente implacáveis perseguiam-nos, prendiam-nos, faziam-nos desaparecer dos seus locais habituais e reaparecer algures, em qualquer coisa como campos de concentração, onde eram obrigados a permanecer e a… concentrarem-se: iam ensinar primeiras letras e alguma cultura geral aos futuros mestres do mundo, um bando de macacos sobredotados e já treinados em diversos outros exercícios por especialistas de outras áreas. Acontece, então, que, algures em Lisboa, uma menina de doze anos, filha de um catedrático de Antropologia e de uma doutorada em História Contemporânea, ambos presos e deportados, escapa despercebida e aninha-se, coitadinha, escondida, no sótão; com um pequeno computador portátil consegue aceder à rede sem fios do vizinho, por sinal o mesmo chefe das forças especiais notavelmente implacáveis. Beneficiando desse abuso, a menina começa a escrever um blogue. Os primeiros posts impressionam pela lucidez, pela pertinência, pela relevância dos temas e respectiva organização, pela coerência do pensamento e, sobretudo, pela limpeza ortográfica, tão do agrado dos jornalistas que escrevem "paralizar" onde deviam escrever "paralisar". O blogue começa a ter sucesso; gente do ministério da educação inquieta-se: a autora, sendo menina e nova, só podia provir duma escola privada, dessas que se esmeram. As forças de segurança, pelo seu lado, receiam que tamanha lucidez e tão aplicada capacidade de escrita tarde ou cedo, mas talvez cedo, se mobilizem para a denúncia da situação a um tempo misteriosa e iníqua dos professores da área de humanidades. Começam as buscas. Informáticos particularmente dotados — os mesmos que treinaram os referidos macacos na manipulação de computadores — tentam rastrear a origem do blogue e do respectivo correio electrónico. Depressa chegam, por meios lá deles, ao endereço do chefe das forças especiais notavelmente implacáveis. O escândalo rebenta! Seria ele a fazer-se passar por uma menina de doze anos? O guarda-fatos não exibia roupa feminina, mas ele podia escrever nu: seria até mais perverso. Por outro lado, a lealdade do oficial parecia comprovada, acima de suspeita razoável… O certo é que cortada a ligação à Internet, o blogue pára. Como se tivesse sido bloqueado. Blogue interrompido, estão a ver? Pela cidade desata a correr a pergunta: "É verdade que o blogue acabou?" (O blogue da menina era já familiarmente conhecido como "o blogue".) A angústia cresce. Não sendo possível — nem legítimo — prender o chefe das forças especiais notavelmente implacáveis, o governo decide restabelecer a ligação à Internet em casa do oficial, mas restringindo-lhe o uso do computador, a que apenas podia aceder sob vigilância apertada, que ele próprio, aliás, já tinha solicitado por ocasião das primeiras suspeitas (a fim de provar sem dúvida a sua inocência). O blogue não tardou a recomeçar. E pela cidade a correr a pergunta: "Então afinal o blogue ainda não acabou?" O problema cresce. Os informáticos particularmente dotados coçam a cabeça. Tudo parece encaminhar-se para o impasse. Até que a menina, como seria de esperar, comete um erro. Um pequeno erro, um deslize sem importância, nem sequer um crime, ou nem sequer um crime grave. Aborrecida, incapaz de extrair do blogue toda a diversão e todo o ânimo que a sua difícil situação requeria, começa a sacar músicas e filmes da Internet. Usando a rede do vizinho, claro. O chefe das forças especiais notavelmente implacáveis cedo se vê confrontando com uma conta descomunal: ultrapassara largamente o máximo de tráfego de download permitido. Ora, não havendo qualquer filme no computador dele, a que acedia, como se sabe, debaixo de rigorosa vigilância, ficava provado que a ligação era insegura. Alguém se servia da rede sem fios para disseminar a inquietação e inspirar a piedade dos cidadãos. De novo chamados, os informáticos particularmente dotados fazem o que, segundo alguns, deviam ter começado por fazer: encriptam a rede com uma chave virtualmente impenetrável. A menina de doze anos, no seu escuro sótão, perde o acesso. Sem conhecimentos informáticos, sem especial imaginação, nunca mais poderá publicar posts, nem sequer a dizer que nunca mais poderá publicar posts. A sua situação é inteiramente desesperada, mas ninguém sabe. O blogue pára, acaba, suspenso brutalmente, mas ninguém repara. Nunca mais ninguém se lembrará dele, e a menina mais dia menos dia terá de arranjar outro meio de.

Nunca seremos cotas*!

— Lá andam outra vez a malhar na escola…
— São os cotas, meu, são os cotas. Lê as indignações a propósito desta coisa bizarra de não avaliar erros ortográficos não sei em que ano: estão cheias de advérbios, "hoje", "agora", "antes".
— Bem observado, são os cotas, meu: "no meu tempo levava nas orelhas se trocava um s por um z, agora os meninos brincam e têm todos os direitos"… Aproveitam qualquer merdice para anunciar que, quando eles morrerem, vai ficar tudo perdido e estragado e arruinado e o mundo entregue à canalha infantil e adolescente.
— São os cotas, meu, são os cotas. Invejosos como o raio, acham-se muito sabidos e são afinal broncos ao ponto de repetirem o lugar-comum mais velho do mundo…
— Isso, essa coisa de "no meu tempo…." por oposição a "agora". "No meu tempo" é que se aprendia, "hoje" ninguém sabe nada… isso data de quando? da Idade Média? Ou já havia cotas em Roma?
— Os cotas, meu, os cotas estão por todo o lado e em todas as épocas… Deve ter havido muito pterodáctilo cota. E os de hoje, então… Quantos deles sabem ao certo o que é ortografia? quantos não confundem grafia com ortografia? quantos acham que a língua morre com um erro de ortografia? quantos não se embaraçam na colocação dos pronomes? quantos não trocam alegremente um conjuntivo por um indicativo…?
— São cotas, meu, são cotas, já lhes falha a cabecinha…
— Também vamos ficar assim quando chegarmos à idade deles?
— 'Tás parvo! nós nunca chegaremos à idade deles, porque nós não temos idade, e quando lá chegarmos, já não vamos saber que tivemos um dia a idade que temos hoje, e por aí fora. Nunca seremos cotas!
— 'pera, meu, 'pera aí! Não será quotas?

*Este blogue ainda não acabou.

Longa vida aos espirituosos!

*


War is God's way of teaching Americans geography.

terça-feira, 29 de maio de 2007

Este blogue ainda não acabou

— Nota que a afirmação do título pode ser enganosa, ou contingente, derivar por exemplo de alguma gralha… quem te garante que o ponto de interrogação não caiu?
— Sim, está-se a ver… o ponto de interrogação cansava-se de aparecer a repetir a mesma pergunta… sim, porque já foi feita, como sabes. Isto aliás devia chamar-se a náusea, ou a náusea não acabou, Deus nos livre…
—A pergunta deve ser repetida. Aliás, é sempre repetida. De cada vez que visitas um blogue, afinal vais verificar se acabou: e chegas lá e perguntas, sem te dares conta, "este blogue não acabou?"
— Pensei que ias dizer que, de cada vez, deixo subentendida a afirmação "olha! este blogue não acabou".
— Gaita! mas não vês que é o mesmo? Um blogue está sempre à beira do fim, do termo, ou melhor dito, da interrupção. Pode acabar a qualquer momento, porque não há nenhuma regra inerente que lhe imponha um fim.
— E por outro lado nunca acaba, não é mesmo? Quem quer que lhe ponha fim, abandona-o…
— Agora és tu que repetes
— E devo repetir: quem quer que lhe ponha fim, abandona-o constituindo-o totalidade separada, livre, autónoma, o que quiseres. Destinada ao esquecimento, muito provavelmente, mas fechada, completada, organizada para que possa ser tomada como um todo. É uma nova possibilidade, aliás uma imensa possibilidade.
— Mesmo que o fim tenha sido acidental…?
— Sobretudo nesse caso.
— Então estamos de acordo! É virtualmente impossível acabar com um blogue.
— Eu diria estruturalmente impossível.

domingo, 27 de maio de 2007

Se este blogue não acabou, talvez nos tenha abandonado

— Acho que percebo a tua objecção.
— Não é objecção, é uma visão, digamos, alternativa. Aceito que o blogue é interminável, que não acaba, ou pode não acabar, ou não acaba por si mesmo. Acaba ou pára por acidente ou por abandono.
— Sim, isso também eu aceito. Mas dizias…
— Dizia que assim regressam à cena as pessoas… a qualquer momento aquele que o abandonou regressa, acarinha-o, e fica mais uns tempos por ali… quem é "aquele", senão uma pessoa?
— Mas como querias que fosse? os blogues são escritos por pessoas, ou não?
— Olha quem fala…
— Em regra, homem, em regra. Falo de situações regulares, blogues de vivos, de gente viva…
— Aí tens a distinção, vivos ou mortos, é muito diferente. Vivos são pessoas, e aquela frase sugere que as pessoas se condoem dos blogues abandonados e regressam para os reconfortar. Quando é precisamente o contrário que se passa.
— O contrário!? Precisamente o contrário!? São os blogues que regressam para reconfortar as pessoas que os abandonaram? Isso não tem sentido!
— Claro que não, o "precisamente" era expletivo. Se trazes pessoas à cena do blogue, então é mais urgente dizer que são os blogues que as reconfortam. Ou elas esperam do blogue que as reconfortem. Melhor explicado: as pessoas "ficam por ali", não abandonam o blogue ou regressam depois de abandono provisório, porque têm medo de que seja o blogue a abandoná-las. E para sempre, sem regresso viável.
— Quer dizer que, metendo em cena as pessoas, não há diferença entre abandonar o blogue e ser abandonado por ele?
— Alta perspicácia, meu caro.