terça-feira, 24 de abril de 2007

Longa vida aos espirituosos*!


No tener vicios no añade nada a la virtud.

Antonio Machado




*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Longa vida aos espirituosos*!


I am not young enough to know everything.

Oscar Wilde




*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

O enguiço

– Ai D. Augusta, que anjo que é!

Ela ria; chamava-me enguiço! Eu sorria, sem me escandalizar. «Enguiço» era com efeito o nome que me davam na casa – por eu ser magro, entrar sempre as portas com o pé direito, tremer de ratos, ter à cabeceira da cama uma litografia de Nossa Senhora das Dores que pertencera à mamã, e corcovar. Infelizmente corcovo – do muito que verguei o espinhaço, na Universidade, recuando como uma pega assustada diante dos senhores lentes; na repartição, dobrando a fronte ao pó perante os meus directores-gerais. Esta atitude de resto convém ao bacharel; ela mantém a disciplina num Estado bem organizado; e a mim garantia-me a tranquilidade dos domingos, o uso de alguma roupa branca, e vinte mil réis mensais.

Não posso negar, porém, que nesse tempo eu era ambicioso – como o reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lépido Couceiro. Não que me revolvesse o peito o apetite heróico de dirigir, do alto de um trono, vastos rebanhos humanos; não que a minha louca alma jamais aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia, seguida de um correio choutando; – mas pungia-me o desejo de poder jantar no Hotel Central com champanhe, apertar a mão mimosa de viscondessas, e, pelo menos duas vezes por semana, adormecer, num êxtase mudo, sobre o seio fresco de Vénus. Oh! moços que vos dirigíeis vivamente a S. Carlos, atabafados em paletós caros onde alvejava a gravata de soirée! Oh! tipóias, apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente para os touros – quantas vezes me fizestes suspirar! Porque a certeza de que os meus vinte mil réis por mês e o meu jeito encolhido de enguiço, me excluíam para sempre dessas alegrias sociais, vinha-me então ferir o peito – como uma frecha que se crava num tronco, e fica muito tempo vibrando!


P.e António Vieira, Sermão da Circunscrição da Ironia Queirosiana, parte I.

terça-feira, 17 de abril de 2007

O brandy e o telescópio

— Aqui tens tu, Zé Fernandes (começou Jacinto, encostado à janela do mirante), a teoria que me governa, bem comprovada. Com estes olhos que recebemos da Madre natureza, lestos e sãos, nós podemos apenas distinguir além, através da Avenida, naquela loja, uma vidraça alumiada. Mais nada! Se eu porém aos meus olhos juntar os dois vidros simples dum binóculo de corridas, percebo, pôr trás da vidraça, presuntos, queijos, boiões de geleia e caixas de ameixa seca. Concluo portanto que é uma mercearia. Obtive uma noção: tenho sobre ti, que com os olhos desarmados vês só o luzir da vidraça, uma vantagem positiva. Se agora, em vez destes vidros simples, eu usasse os do meu telescópio, de composição mais científica, poderia avistar além, no planeta Marte, os mares, as neves, os canais, o recorte dos golfos, toda a geografia dum astro que circula a milhares de léguas dos Campos Elísios. É outra noção, e tremenda! Tens aqui pois o olho primitivo, o da Natureza, elevado pela Civilização à sua máxima potência de visão. E desde já, pelo lado do olho portanto, eu, civilizado, sou mais feliz que o incivilizado, porque descubro realidades do Universo que ele não suspeita e de que está privado. Aplica esta prova a todos os órgãos e compreenderás o meu princípio. Enquanto à inteligência, e à felicidade que dela se tira pela incansável acumulação das noções, só te peço que compares Renan e o Grilo... Claro é portanto que nos devemos cercar da Civilização na máximas proporções para gozar nas máximas proporções a vantagem de viver. Agora concordas, Zé Fernandes?
Não me parecia irrecusavelmente certo que Renan fosse mais feliz que o Grilo; nem eu percebia que vantagem espiritual ou temporal se colha em distinguir através do espaço manchas num astro, ou através da Avenida dos Campos Elísios presuntos numa vidraça. Mas concordei, porque sou bom, e nunca desalojarei um espírito do conceito onde ele encontra segurança, disciplina e motivo de energia. Desabotoei o colete, e lançando um gesto para o lado do café e das luzes:
— Vamos então beber, nas máximas proporções, brandy and soda, com gelo?

Luís António Verney, Contribuição para a Crítica de "A Cidade e as Serras" de Eça de Queirós, p. 23.

segunda-feira, 16 de abril de 2007

Longa vida aos espirituosos*!


Un homme seul est toujours en mauvaise compagnie.

Paul Valéry



*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

terça-feira, 10 de abril de 2007

Lição do galo

— São muito azedos, os teus espirituosos…
— Meus? Que raio de ideia. Encontro-os sem os procurar, colijo-os sem lhes pedir licença, estropio, trunco, altero… são tudo menos meus, se no possessivo queres insinuar algum sinal de respeito ou reverência da minha parte.
— Por acaso não queria nada de semelhante. Assim mesmo é que me parecem mais teus. Mas disse “teus” porque és tu que os papagueias, só isso. E que são azedos, são.
— Querias espirituosos alegres?
— Não, nem tanto, mas alguma boa disposição, algum humor leve, sei lá…
— Ora, ora. Para que queres tu isso? O galo canta até na manhã em que vai acabar na caçarola.
— Hmm, cheira-me que isso não é teu…

Longa vida aos espirituosos*!






Happiness is the perpetual possession of being well deceived.


Jonathan Swift



*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

domingo, 1 de abril de 2007

Longa vida aos espirituosos*!



What ought to be done to the man who invented the celebrating of anniversaries? Mere killing would be too light.


Mark Twain



*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

Os malefícios da proibição

Gostas de citar, meu lindo? (Que raio de maneira de começar. Haverá propósito?) Há tempos, deixaste a meio um texto sobre o tabaco, a proibição de fumar, os supostos direitos de quem não fuma, a diferença entre o tabaco e a cocaína (ou a heroína), que depois nem era relevante, e nem sei que mais. Sem punch line, o texto ficou paralisado; preterido. Mas gostas de citar, meu lindo? (Que coisa, isto volta: quem é este lindo a quem chamo meu?) O ponto, se não erro, era este: indesmentíveis que sejam os malefícios do tabaco, mais nefastos que indesmentíveis são os malefícios da proibição. É um ponto difícil de argumentar. Quem defenda o tabaco, e fume, defende-se sem dificuldade de maior. Quem não fume, mas suponha o tabaco um mal menor ou ainda um benefício, dirá isso mesmo. Já quem entenda que o tabaco empesta o ar terá maior dificuldade em repudiar a proibição enquanto proibição. O bom senso diz que ao Estado compete proibir o nefasto. Como podemos repudiar que se fume em locais públicos e ao mesmo tempo que se proíba o tabaco em locais públicos? Enfim, gostas de citar, meu lindo? Aqui vai o exemplo que ilustra a necessidade da distinção difícil: «Foi preciso que o Parlamento levasse um boa bofetada na cara, mas mais vale tarde do que nunca. Que o dr. Correia de Campos, do alto da sua autoridade, obrigue o proprietário de um restaurante a impedir a sua clientela de fumar não impressionou os senhores deputados. Que o Estado resolva impor uma regra geral que exclui a hipótese de os fumadores frequentarem restaurantes de fumadores também não colidiu com a sensibilidade democrática da Assembleia. Agora que o grupo parlamentar socialista interfira na comodidade e nos vícios de cada um é verdadeiramente grave. As leis, como toda a gente sabe, são para a canalha. A canalha que as cumpra e cale o bico. Os senhores deputados, pelo contrário, têm direitos. Por exemplo: no avião de Sócrates, que os contribuintes pagam, fuma quem quer e o ar até se torna ‘quase irrespirável’. Assim é que é; e assim é que deve ser em S. Bento.» Acutilante, preciso: e vindo dum defensor do tabaco (Vasco Pulido Valente), claro, fumador, claro, mais ajuda, e até foi hoje (Público, lá para a última página, sublinhados meus). Gostas de citar, meu lindo?