terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Longa vida aos espirituosos*!



Nothing so needs reforming as other people's habits.


Mark Twain



*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

Impossível!

— Como ontem não estivemos cá…
— Já te disse que não há nenhum ontem! Não há nenhum cá. Nem sequer nenhum nós. Somos mera energia universal materializada…
— Desmaterializada, queres tu dizer…
— Não! O que eu quero dizer é que tanto faz, materializada ou desmaterializada, porque não há nenhum ontem, não há nenhum amanhã, nenhum cá, nenhum nós…
— Gaita! Tornou-se mesmo impossível falar contigo!

domingo, 25 de fevereiro de 2007

Segunda sessão

— Então, falo de quê?
— Do que quiseres. Mas é melhor não nos tratarmos por tu. Ganha-se intimidade, perde-se distância…
— Não é o mesmo?
— Não, as formas de tratamento têm…
— Não é isso, homem. Ganhar intimidade e perder distância não é o mesmo?
— Penico! assim não se progride, se te pões a questionar tudo!
— Pensei que era essa a ideia desta coisa de encenar a psicanálise. Ou não?
— Sei lá! tu é que tens pena de não ter feito psicanálise, eu só quero ajudar…
— Mas que sentido é que isso faz agora? O que se perdeu está para sempre perdido. O que eu queria, quando disse que tenho pena, era ter tido a oportunidade de chegar ao melhor modo de vida para mim através do meu próprio juízo e da minha própria decisão.
— Não querias mais nada! Autonomia, não?
— Precisamente! Autonomia e liberdade. Em certas condições, a psicanálise é a única via para isso, desperdiçadas ou recusadas todas as outras. E nem te estou a ver à altura do encargo, se queres que te diga. Nem sequer como ficção ou ensaio ou lá o que é.
— Ora… Qual é a dificuldade? É só ficar para aqui sentado, finjo ouvir tudo o que tu dizes com muita atenção, faço uma pergunta ou outra, ao fim dos quarenta e cinco minutos “upa! upa! que acabou a hora!”, e pronto. A bem dizer o trabalho principal é mesmo teu…
— Pois, se calhar tens razão. Mas olha, isto não devia ser confidencial?
— Claro, inteiramente, absolutamente confidencial.
— Então e as vinte ou trinta pessoas que para aqui espreitam diariamente?
— É verdade, não tinha pensado nisso. Vou fechar a porta.

sábado, 24 de fevereiro de 2007

Depois da escola, a escola

Um sujeito abeira-se dum livro sobre educação* e logo lê nas primeiras linhas:

“Cada vez mais se exige da escola que compense o fracasso das outras instituições sociais. Pela primeira vez na história, esperamos que dê instrução a todos, e não apenas àqueles cujos pais já tinham sido eles próprios instruídos. E espera-se isso apesar de uma larga massa de crianças ser mantida na extrema pobreza, e apesar de as crianças serem rodeadas, em idades muito precoces, por uma cultura popular ardorosamente anti-intelectual.”

Valia a pena acrescentar que, no geral, as opiniões, discursos, ideias que correm pela televisão e pelos jornais, em vagas mais ou menos periódicas, integram perfeitamente, completando-a, essa cultura popular anti-intelectual. Pelo menos enquanto ignoram, como tendem a ignorar ou a escamotear, os limites impostos à escola pelas próprias exigências que lhe fazem. Dir-se-ia que a escola não cumpre porque se degradou, sozinha e tendo a possibilidade de não se degradar. Como se um grupo de malfeitores perversos tivesse tomado conta dela e a desviasse do seu natural, legítimo e original rumo. Daí o sempre assegurado sucesso dos que polemizam contra caricaturas (o “eduquês”, os manuais medíocres, etc.).

*

O mesmo sujeito, entretanto, vira a página e encontra a formulação dos princípios que as escolas, os governantes e os educadores deveriam adoptar. Logo assim:

“Esses princípios centram-se no interesse das crianças e não nos interesses mais vastos da sociedade, das empresas, das igrejas ou, já agora, dos pais. As crianças têm o direito de conhecer um espectro largo de modos de vida e o direito a uma educação que as torne capazes de considerar o seu próprio modo de vida à luz dessas alternativas e, em última análise, de rever ou rejeitar o modo de vida que os pais lhes transmitiriam.”

Não é um belo programa? Dirão que não se pode esperar sem risco de fantasia que a escola pública, sujeita ao poder político, ou a escola privada, sujeita ao lucro, privilegiem interesses que, no fundo, contrariam os de quem vota e paga. Mas é desde logo um bom argumento para ponderar a intervenção ou o direito à intervenção dos pais na escola. Pelo menos. E aliás, a fantasia estrutura um bom princípio de resistência à noção actual e degradada que exige da escola que forme profissionais, cidadãos cumpridores, gente capaz de fazer contas de cabeça.

*

Mais adiante, no mesmo livro, mesmo sujeito, etc.:

“Temos perante as crianças tanto o dever de lhes proporcionar uma infância rica e agradável como o dever de as preparar de modo a que possam usufruir de um leque significativo de oportunidades que lhes permita ter uma idade adulta próspera.”

Qualquer dos deveres é irrecusável, e alguns dirão que um implica o outro. Na verdade são distintos: um preserva o estado da infância, outro desvaloriza-o como etapa provisória da formação; um sublinha a actualidade livre de qualquer propósito, outro subordina a instrução à teleologia. A escola não sobrevive a esta contradição sem se degradar. Aliás, a escola não sobrevive a esta contradição: morre, depois renasce disfarçada de escolaridade obrigatória.



*Harry Brighouse, On Education, Londres, Routledge, 2006.

Longa vida aos espirituosos*!

(reprise)

Vivemos numa cultura em que os critérios do ser humano, e portanto de participação na comunicação, estão fixados de forma demasiado rígida. Nem incubos, nem súcubos, nem anjos, nem demónios se admitem hoje como interlocutores de pleno direito. Não acho isto nada bem.

Boris Groys

*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Primeira sessão (malogro)

—?
— Bom, cá estou eu…
Isto começa mal!
— Essa agora! porquê?
— Ora, uma simples frase com tanta asneira, ou uma só, incompatível de raiz com o que pretendemos fazer: presumir que se sabe de antemão…
— … que se sabe de antemão o quê?
— Que há um “cá”, designável e localizável. Que se pode habitá-lo, entrar ou sair ou permanecer nesse “cá”. E sobretudo que, chegando a esse “cá”, o tal “eu” continua “eu”. No fundo, presumir que há um “eu”, uno, sempre designável, sempre localizável, e através de todos os mundos por onde passa imutável e por isso identificável…
— Que coisa desagradável, tanto ável. Não sei se é gostável.
— Não te queixes. Isto tem de ser bem feito.Vá lá, sai e volta a entrar.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Pequeno ajuste

— Mudamos de nome agora, é?!
— Só um pequeno ajuste. Passou o tempo das contradições performativas, é muito surrado, muito pós-moderno, muito lúdico, que tédio...
— De acordo, sem a menor dúvida. Mais vale uma boa ou piedosa interjeição.
— Não é?!

Dinheiro

— Ponderei, pensei, e olha! resolvi aceitar aquela tua ideia, a proposta de encenarmos a psicanálise.
— Boa! quando começamos?
— Calma, há um ponto que precisa de esclarecimento: o dinheiro.
— Dinheiro?! Que dinheiro?
— Não disseste que eu devia pagar?
— Sim, claro, não há psicanálise sem pagamento. Como queres tu garantir a distância do analista? O pagamento protege analista e cliente dos fluxos passionais; por outro lado, é quase como pagar a alguém para ser nosso amigo ou simplesmente simpatizar connosco.
— Safa! recorrem ao dinheiro para isso?
— A coisa é tão familiar, tão comum, que já ninguém se apercebe da função original do dinheiro. Mas é isso mesmo, posso garantir-te. A função original do dinheiro, a própria razão da sua invenção, não é outra.
— Matar o desejo? Ou substituir o desejo? Não percebo bem…
— Desejo!? Qual desejo?! Não, homem, pagar ao psicanalista. A razão de ser do dinheiro é pagar ao psicanalista.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Inquéritos

Não me espanta a alguma perplexidade. Nem a Perplexidade. Já me causa a mesma perplexidade que estes inquéritos continuem. Acho que alguém disse: se não queres que o teu vizinho te minta, não lhe perguntes nada. Como se a causa da mentira fosse a própria exigência de verdade. (Quem já experimentou garante-me que é assim mesmo, e que o conselho vale para amigos, cônjuges, políticos, colegas de trabalho e irmãos. Mas, por outro lado, sabe-se que há muitos limites para a exigência de verdade. Muitíssimos.) Os inquéritos querem saber, decerto. Curiosamente, ou não, parecem concluir-se sempre com o que já se sabia. Inquire-se para saber o que se desconhece ou para confirmar o que se sabe? Pergunta-se porque se sabe ou porque se quer saber?

*

Também pode ser coisa de amorosos. Por exemplo, a esperança. A esperança pode tudo. Os autores destes inquéritos, eternos pacientes dessa loucura mansa que é a dos livros, não se conformam com o desdém da juventude. Em cada golpe de inquérito que desferem vai tudo posto na esperança de que a realidade tenha mudado enfim. Ah, já se lê mais um por cento. Que bom, imagina, mais três por cento disseram ter lido um livro inteiro na semana passada. Fantástico, o número de pessoas que odeiam os livros caiu de x para x — 0,089… E por aí fora. É a esperança, que tudo pode.

*

Que mal há na ilusão? Ninguém vive sem ela (ou fora dela). As ilusões estruturam respostas a problemas ou, quando menos, a dificuldades. Deixa-se actuar a ilusão, e quando a estrutura está pronta e a andar na rua (ao contrário do que pretendiam os estudantes de 68), activa-se o antídoto: a realidade contra o desejo, ou coisa assim. O conhecimento vale, então, porque assente na realidade e não no desejo do sujeito, maníaco, louco manso ou amoroso. Quer isto dizer que esses inquéritos, se forem mesmo coisa de mania, loucura mansa, de sujeitos amorosos, tornam-se uma forma muito legítima de propagandear os livros e de difundir a leitura. Pouca gente a ler? Decerto porque se não fizeram suficientes inquéritos aos hábitos de leitura. Longa vida aos sociólogos, não aos espirituosos.

*

O que conduz a outro ponto. O que quer que sejam os inquéritos, sempre se presume que as perguntas estão certas. Quero dizer que se presume que, quando se pergunta a alguém “Quantos livros leu este ano?” a pergunta em si mesma não oferece dificuldades de interpretação. Um engraçadinho armado em kantiano poderia, porém, compor um textinho com o título: Resposta à pergunta: o que é ler um livro? Quem havia de o condenar? Decerto logo o sociólogo, sobretudo se caindo na categoria do maníaco, louco manso ou sujeito amoroso: nessas categorias sabe-se o que é um livro, sabe-se o que é ler, sabe-se o que é ler um livro. Fora delas: não se sabe. Já não se sabe. Já não se pode saber. Quantos dos que responderam “nenhum” não presumem na pergunta simplesmente uma certa ideia de livro, uma certa ideia de leitura, uma certa ideia do que seja ler um livro?

*

Devíamos fazer um inquérito aos modos dos inquéritos. Não para continuar a ilusão, porque os resultados não seriam melhores. Seriam seguramente piores, e por isto: quem não lê livros não tem noção nenhuma das possibilidades de sentido da expressão “ler livros” na pergunta “costuma ler livros?”

Longa vida aos espirituosos*!


Sonhei com Freud... o que quererá isso dizer?

Stanislas Jerzy Lec


*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

'tis good to be a post!

ROSALIND
They say you are a melancholy fellow.

JAQUES
I am so; I do love it better than laughing.

ROSALIND
Those that are in extremity of either are abominable fellows and betray themselves to every modern censure worse than drunkards.

JAQUES
Why, 'tis good to be sad and say nothing.

ROSALIND
Why then, 'tis good to be a post.

Shakespeare [As You Like It, Act 4, Scene 1]

O sono científico



— Não eras tu que sofrias de insónias?
— Nem me fales! que ainda hoje me lembro disso. Desde pequeno, nocturnas e matinais, no verão e no inverno, por causa do stress e por falta de stress, quando estava doente e quando estava são… Nunca dormi bem.
— Culpa dos teus pais, não sei se sabes. Cresceram num tempo em que ainda não havia o método científico para ensinar os filhos a dormir. Vinha ontem no Diário de Notícias. É dum catalão. É só deixá-los sozinhos, a chorar, até que adormecem.
— Também vi. Mas já havia, sim, esse método é antigo, até com o título científico, o homem não inventou nada. E sem o título científico, então, é mais velho que o cagar de cócoras.
— Ah é?
— Claro, aquilo consiste basicamente em dizer à criança: agora ficas aqui até adormeceres, escusas de pensar que vimos cá consolar-te ou coisa que o valha, amanha-te. É treiná-la para ficar sozinha. Só não tem a parte de dar com o jornal no nariz, mas é como treinar o cão a pedir para ir à rua fazer cocó.
— Que exagero… O pediatra diz que é para a criança aprender a dormir. E que é infalível.
— Para aprender a dormir sem contar com os pais e quando os pais decidem que ela deve dormir. E claro que é infalível, como tudo o que um sujeito mais forte impõe a outro incapaz de lhe resistir e dele dependente.
— Mas porquê tanta indignação? tu nunca tiveste filhos…
— Pois não, mas indignam-me as mistificações em nome da ciência. E indigna-me ainda mais a vontade pretensamente fundada na ciência de impor comportamentos. Quando os malefícios que o método desse pediatra causa ficarem visíveis, ele já não vai lá estar para lhe pedirem contas…
— Malefícios? E se forem benefícios?
— Mas aí é que está, ninguém poderá provar nem benefícios nem malefícios, porque não pode fazer regredir a criança, mudar de método e ver o que dá. Só se pode decidir por certa forma de actuar e ter a esperança, fundada nessa decisão, de que seguramente dará benefícios. Qualquer que ela seja. Para isso não precisamos de pediatras nem de ciência que substituam os pais, os impeçam de decidir e depois os culpem por abdicarem do papel de pais.

Longa vida aos espirituosos*!


Nem tudo o que se pensa tem forçosamente de se dizer; nem tudo o que se diz tem imperiosamente de se escrever; nem tudo o que foi escrito tem obrigatoriamente de se publicar; e ninguém é obrigado a ler tudo o que se publica.

Rabi Israel de Salant



*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

domingo, 18 de fevereiro de 2007

O enigma da rinofaringe

— Já viste quem vai ali? Reparaste? o tipo entorta mesmo os pés…
— É, muito trôpego, coitado! O que me fez mais impressão foi a tristeza dele, não se conforma mesmo, o pobre diabo. É estranho, até, pensando na quantidade de gente que falou, fala e vai continuar a falar dele… O tipo devia sentir-se, sei lá! meio orgulhoso, ou pelo menos popular.
— Não, nem por isso, ele aliás diz que dele mesmo ninguém fala, que falam é do Sófocles.
— Não deixa de ter razão, vendo bem. Não vai ser isso a compensar-lhe a mágoa, afinal.
— Mas também, que diabo! um tipo que matou o pai…
— Ele continua a dizer que não foi ele…
— Porra, já é muita persistência. Não admira que se dê mal com o Sófocles.
— Essa agora?! Tu não sabes que o Sófocles diz o mesmo?
— Quem te enfiou essa treta? O Sófocles não fala, não diz nada, há séculos que sofre da laringe, ou faringe, ou coisa assim.

Teleologicamente [in]compreensível


[Mas podia bem ser: — Ai, ai... esta espera mata-me!]

sábado, 17 de fevereiro de 2007

[Teleologicamente incompreensível]


[Mas podia bem ser: — Vá lá, não vá já embora...]

Teleologicamente [incompreensível]


[Mas podia bem ser: — E agora, diga-me qualquer coisa engraçada...]

[Teleologicamente] incompreensível


[Mas podia bem ser: — Entre, sente-se aqui... não quer?]

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Longa vida aos espirituosos*!

A vida é assim: um fala e o outro não ouve. E por vezes mais vale não ouvir do que ouvir o que não foi dito.



Shmuel Yossef Agnon





*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Uma proposta honesta

— Tenho estado para aqui a pensar… Tu andas triste, eu ando aborrecido, tive uma ideia do que podíamos fazer os dois…
— Ai não, não acredito, mais ideias não! O que é agora? Outra vez o clube de leitura? Se calhar da República… um clube de cavalheiros? uma sala de bilhar? um… blogue…?
— Tudo muito boas ideias, por sinal.
— Nada disso, tudo péssimo. Eu fico com a minha tristeza, tu goza o aborrecimento, que tens toda a eternidade para isso. Estar aborrecido, estar chateado, como não nos deixavam dizer em tempos, isso é bom, até delicioso, porque…
— Chega, pára com essa merda e ouve a minha ideia. Podíamos, simplesmente podíamos, ouve bem, simplesmente podíamos encenar a psicanálise que não fizeste…
— !!
— A sério! Eu fazia de analista, tu de analisando.
— Analisando? Não sei se gosto do nome…
— Preferes “cliente”? Pode ser, mas assim vais ter de pagar.
— Pensei que era uma encenação…
— E é, claro, mas nem por isso deixa de ser uma proposta honesta. Eu sou um tipo sério.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

A expectativa

Um pobre judeu, cansado de há muito estar sem emprego, resignou-se a pedir auxílio ao rabino, homem no geral bondoso mas a quem se atribuía acentuada tendência para o sarcasmo. A reputação, convenhamos, era justificada. Eis o diálogo:

— Emprego... agora — disse o rabino, coçando a cabeça —, só se for ficares todo o dia à porta do gueto…
— Sozinho? — logo interrompeu o desempregado, que tinha óbvio problema com a rejeição.
— Bom, não necessariamente, posso arranjar-te uma companheira… Olha, serve aquela ali?
— Bem bonita!
— Pois, mas não foi escolhida por isso. Bom, como ia dizendo, vais para a porta do gueto, ficas lá todo o dia, e quando chegar o Messias corres a avisar-nos.
— Não parece difícil. E é trabalho bem pago?
— Não, não recebes nada. Mas é um emprego estável…

(Foto tirada daqui.)

Básico ou primário, posto ensino?

— Mas, pensando bem no assunto, que vantagem vinha de todas as crianças serem poetas ou pintores?
— Quase todas, o Cortázar diz quase todas, não todas… E já te digo uma: crescendo, muitas delas ou mesmo… quase todas, já não teriam necessidade de tentar a poesia e a pintura. Estava feito. Há certas coisas por aí, tão execráveis, que no entanto se admiravam bem na infância. As crianças não precisam de criar obra, é a grande liberdade delas, só têm de fazer duas coisas: crescer e aprender. Crescer e aprender.
— Falas com acerto, ó Sócrates. Mas não me convences…
— Calha bem falares do Sócrates, porque podes ler a frase do Cortázar como, digamos, uma metonímia. Não apenas poetas e pintores, mas também filósofos, sobretudo filósofos. Crescer e aprender implica fazer perguntas. Ora a maldita instrução primária…
— ensino básico, maldito ensino básico…
— Ou isso. O maldito ensino básico domestica a arte da pergunta, treina as crianças para fazerem apenas perguntas úteis.
— Ora, alargas tanto que perdes de vista o alvo. Isso é o que faz todo o ensino. Não te lembras do que nos disse há dias o Bertrand Russel? O homem não nasce estúpido, nasce ignorante: a educação é que o faz estúpido.

Básico ou primário, posto maldito?

— Espreitei agora mesmo e… viste isto?
— Vi, claro. Não estamos sós, hein?
— É verdade. Maldita instrução primária.
— Básico…
— O quê? Básico? quem? eu?
— Já não se diz instrução primária. Agora chamam-lhe ensino básico.
— Não deve ser do meu tempo, mas o modelo é o mesmo: um primário não é um básico? E um gajo um bocado básico não é um gajo um bocado primário?
— Pois é, tens razão. Mas fica bem na mesma: maldito ensino básico.
— Maldito!

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Psicanálise

— Continuas um tanto triste, ou é impressão minha? Não deu resultado a leitura da República?
— És tão engraçado… Aqui não se fica triste, nem sem perde a esperança que já se não trouxe. Não, estava só a pensar numa mágoa que, apesar disso, veio comigo. Vais achar graça…
— Aqui também não se acha graça a nada, meu caro. Muito menos a mágoas. Mas diz lá.
— Tenho pena de não ter feito psicanálise…
— Penico! Essa deixa-me atordoado, ou abasurdido, como dizia o francês…
— Imagino, mas é mágoa mesmo, mágoa genuína.
— Achas que davas melhor morto com psicanálise?
— Não, acho que dava um morto mais livre. Sabes que é essa a novidade da psicanálise, orientar-se para a liberdade, não para a felicidade?
— Não sabia. E mais alguém sabe? Além de ti, claro.
— Arrependo-me sempre de falar contigo. Chiça!

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

A esperança e o sismo

Encontrei ali um gajo que me disse, sem mais nem menos, que ninguém entende nada da República do Platão enquanto não a considerar um livro organizado em torno do problema de saber como evitar o desespero. Diz que leu isso num autor cujo nome lhe escapa, o palerma...
— Olha que, assim de repente... até me parece que, com o tempo, me podia afeiçoar a essa ideia...
— ... de repente... com o tempo... não há aí contra-senso?
— Não, nada disso. Sabes... o que mata não é o cancro, a tentação do abismo, a doença auto-imune, o acidente de trabalho, o aborto às onze semanas — o que mata é a falta de esperança.
— Isso é lindo, sim. Mas... e o sismo?

domingo, 11 de fevereiro de 2007

Sim, toda a razão do mundo

— Então, saímos da letargia para apoiar a escolha da bomba?
— Por causa da nossa Germaine? Ou por causa dos animais?
— Ambas, não? Estamos ou não no ano da toupeira?
— Não entendo a alusão… Estás a dizer que a nossa Germaine é uma toupeira!!??
— Ora, deixa-te disso! Estou a dizer que é altura de sair da toca e revelar que estamos do lado dos animais contra a agressão humana, que execramos a arrogância antropocêntrica, que abominamos esses bullies que ganham dinheiro e prestígio pretendendo-se mais inteligentes e mais corajosos que os animais que maltratam.
— Sim, concordo. Isso tudo. Isso e a nossa Germaine.