terça-feira, 18 de abril de 2006

Estado de excepção

Que maçada! Um homem não pode continuar morto e descansado. Vejam! agora, quer dizer, no sábado (mas para um morto o tempo não se mede assim), foi a Helena Matos, coitadinha! a tirar-me da serena tumba com esta espantosa frase (ainda o acórdão do Supremo, já se vê): “Desde já acrescento que não me choca que um pai ou uma mãe dêem excepcionalmente uma estalada num filho.” Que frase…! Lembrei-me, primeiro, de enviar à Sr.ª D.ª Dr.ª Helena Matos umas quantas variações para que, um dia podendo, me indicasse quais subscreveria: “Desde já acrescento que não me choca que um marido dê excepcionalmente uma estalada na mulher”; “desde já acrescento que não me choca que um patrão dê excepcionalmente uma estalada num empregado”; “desde já acrescento que não me choca que um polícia de trânsito dê excepcionalmente uma estalada num automobilista”; “desde já acrescento que não me choca que a Fátima Bonifácio dê excepcionalmente uma estalada no António Barreto”; “desde já acrescento que não me choca que o José Manuel Fernandes dê excepcionalmente uma estalada na Helena Matos”; e por aí fora. Estas sim, belas frases: excepcionalmente, nenhuma delas me choca. Estou morto, como já disse. O ponto, pelos vistos, é o advérbio de modo, vulgarizado pelo estilo queirosiano, o único que os jornalistas portugueses conhecem. Mais que estilo, porém: sendo excepcional, a estalada deixa de ser estalada ou, não chegando a tanto, é menos grave do que seria caso fosse normal, regular, frequente. É curioso, mas a imensa maioria dos perpetradores de crimes violentos praticam-nos excepcionalmente; e as vítimas mortais de crimes violentos, essas morrem todas excepcionalmente. A excepção absoluta. Não se diria, então, que justamente o excepcional choca? Mas, se o excepcional não choca, não será isso porque se julga normal, aceitável, legítimo, até natural? O que, por sua vez, ocorrerá porque, afinal, as crianças vivem subjugadas num permanente estado de excepção... Será isto?

Não, não deve ser. Isto são coisas de defunto, e defunto ocioso. Mas estou daqui a imaginar, deste lado do mistério, a Sr.ª D.ª Dr.ª Helena Matos vendo algures um adulto pregar uma estalada na criança que o acompanha. Coça o alto da cabeça. Franze o sobrolho. Determina-se, e interpela o sujeito: “— Essa estalada é uma entre várias, frequentes e regulares, ou tem carácter excepcional?” O sujeito, insolente, responde: “— Qual excepcional! ‘Tá-se a passar ou quê? É a quarta hoje, o raça do miúdo não pára quieto, é só à chapada…” E ela: “— Oh! então estou chocada!” Sim, deve ser isto mesmo.