segunda-feira, 3 de julho de 2006

Política da imortalidade

Conversa interessante, não? Quando deixa de haver garantia de imortalidade, abre-se o espaço para a política da imortalidade — isto, claro, desde que não se renuncie à imortalidade. Em tempos saudosos, o não menos saudoso Osvaldo Silvestre elucubrava muito a respeito do cânone: noites a fio, coitado. Que será feito dele, a propósito…? Eu então escarnecia, hoje chego a arrepender-me. Um dia, ele lembrar-se-á ou não, observei-lhe que achava nociva a preocupação com o cânone, coisa importada e mais própria de agentes funerários. A comparação era imprestável, agora é que me ocorre a boa: uma família enorme, muito grande mesmo, sofre mortandade súbita de velhos e novos, dezenas de mortos num espaço curto, digamos uma semana: sem recursos, vêem-se os sobreviventes forçados a escolher entre os mortos quais serão enterrados devidamente e quais deitados à vala comum, ou seja, quais serão lembrados, quais serão esquecidos. Isso é o cânone, valha-nos Deus! nada mais do que obrigar os vivos a lembrarem alguns mortos para que não sejam esquecidos. Alguém tem de escolher os mortos e obrigar os vivos a recordá-los. E quando daqui olho as discussões minutíssimas que o assunto suscita, invariavelmente em volta dos programas escolares, fico com a impressão de que certos defensores dos "clássicos" militam na esperança de que um ou outro morto um dia regresse momentaneamente para lhes agradecer. Havia de ter graça.