segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

O sono científico



— Não eras tu que sofrias de insónias?
— Nem me fales! que ainda hoje me lembro disso. Desde pequeno, nocturnas e matinais, no verão e no inverno, por causa do stress e por falta de stress, quando estava doente e quando estava são… Nunca dormi bem.
— Culpa dos teus pais, não sei se sabes. Cresceram num tempo em que ainda não havia o método científico para ensinar os filhos a dormir. Vinha ontem no Diário de Notícias. É dum catalão. É só deixá-los sozinhos, a chorar, até que adormecem.
— Também vi. Mas já havia, sim, esse método é antigo, até com o título científico, o homem não inventou nada. E sem o título científico, então, é mais velho que o cagar de cócoras.
— Ah é?
— Claro, aquilo consiste basicamente em dizer à criança: agora ficas aqui até adormeceres, escusas de pensar que vimos cá consolar-te ou coisa que o valha, amanha-te. É treiná-la para ficar sozinha. Só não tem a parte de dar com o jornal no nariz, mas é como treinar o cão a pedir para ir à rua fazer cocó.
— Que exagero… O pediatra diz que é para a criança aprender a dormir. E que é infalível.
— Para aprender a dormir sem contar com os pais e quando os pais decidem que ela deve dormir. E claro que é infalível, como tudo o que um sujeito mais forte impõe a outro incapaz de lhe resistir e dele dependente.
— Mas porquê tanta indignação? tu nunca tiveste filhos…
— Pois não, mas indignam-me as mistificações em nome da ciência. E indigna-me ainda mais a vontade pretensamente fundada na ciência de impor comportamentos. Quando os malefícios que o método desse pediatra causa ficarem visíveis, ele já não vai lá estar para lhe pedirem contas…
— Malefícios? E se forem benefícios?
— Mas aí é que está, ninguém poderá provar nem benefícios nem malefícios, porque não pode fazer regredir a criança, mudar de método e ver o que dá. Só se pode decidir por certa forma de actuar e ter a esperança, fundada nessa decisão, de que seguramente dará benefícios. Qualquer que ela seja. Para isso não precisamos de pediatras nem de ciência que substituam os pais, os impeçam de decidir e depois os culpem por abdicarem do papel de pais.