segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

Problema de cão

§ 1
Proponho-me denominar problema de cão o problema que embaraça o cidadão compelido — por outro ou por si mesmo, pelas circunstâncias ou pelo hábito — a decidir se determinado “enunciado alheio” (EA) que lhe foi dirigido pertence ou não ao conjunto que, por comodidade e provisoriamente, designarei “enunciados humorísticos inofensivos” (EHI).
a) O conjunto dos EHI não é um subconjunto do conjunto dos “enunciados humorísticos” (EH), pois tal pressuporia que EH abrigaria outro subconjunto, o dos “enunciados humorísticos ofensivos” (EHO), o qual naturalmente não existe (pode existir, porém, artificialmente) enquanto subconjunto.
b) A necessidade da alínea anterior ficará óbvia lá mais para diante.


§2
A denominação problema de cão tem razão histórica, quer dizer, deriva de uma história contada por Fania Pascal, que conheceu Wittgenstein em Cambridge, em 1930. Dele conta este episódio: “I had my tonsils out and was in the Evelyn Nursing Home feeling sorry for my self. Wittgenstein called. I croaked: ‘I feel just like a dog that has been run over.’ He was disgusted: ‘You don’t know what a dog that has been run over feels like.’”
Harry G. Frankfurt discute este gracioso episódio com outros propósitos. (Daí a ilustração escolhida.) Mas não deixa de formular o problema de cão: Wittgenstein estaria a fazer graça, para animar a pessoa a quem se dirigia, ou a pessoa a quem se dirigia tinha “boas razões” (cf. §3) para presumir que Wittgenstein não estaria a fazer graça mas a censurá-la por dizer um disparate? (Daí o cão, daí o problema. )

§3
O que são “boas razões” ou que razões poderão ser “boas” no contexto particular em que o cidadão decide que certo enunciado alheio não pertence a EHI? (Cf. § 4)

§4
Proponho que nenhuma razão pode ser reputada “boa” no contexto particular em que o cidadão decide que certo enunciado alheio não pertence a EHI. Apenas podemos descrever simulacros de “boas razões”.
Primeira descrição: o cidadão em causa testemunhou actos do enunciador em causa (ou seja, no exemplo oferecido, Wittgenstein) em que se repete o mesmo traço, deduzindo da repetição um princípio de plausibilidade que autoriza a interpretação. Na verdade é ao contrário: a plausibilidade requerida é que constitui repetição a sucessão de traços. Neste sentido, o problema de cão deveria ser redescrito como o problema de Séneca (cf. § 5).

§5
O mais frequente simulacro autorizador da decisão de exclusão de EHI deixa-se redescrever pelo lugar-comum “quem não te conhecer que te compre”.

(Continua.)