domingo, 19 de fevereiro de 2006

O regresso (verso)

— Parte-se-nos o coração, ver aquilo deserto, aqueles dois tristes ali abandonados…
— Acredito. Mas o ponto é: aprenderam a lição?
— Sim, sim, aprenderam, temos a certeza que aprenderam. Já podemos voltar, pode acreditar, podemos voltar.
— Está bem, seja. Os senhores conhecem-nos melhor do que eu. Vou deixar que voltem. Mas Deus me livre de ver que tudo volta ao mesmo, ouviram?
— Sim, sim, Deus nos livre, Deus nos livre.

O regresso (frente)

— Parte-se-nos o coração, ver aquilo deserto, aqueles dois tristes ali abandonados…
— Acredito. Mas o ponto é: aprenderam a lição?
— Sim, sim, aprendemos, queremos voltar, queremos voltar.
— Está bem, seja, vou deixar que voltem. Mas Deus me livre de ver que tudo volta ao mesmo, ouviram?
— Sim, sim, Deus nos livre, Deus nos livre.

sábado, 18 de fevereiro de 2006

É uma pena aquilo estar deserto

À atenção do Groucho,

Meu caro, não sei se reparou, mas alguém, no outro sítio, anda a iludir o Sr. Mourão, fazendo-se passar pelo meu caro. Houve para uma história de cartas falsas ou falsas cartas, falha-me aqui a certeza, e o Sr. Mourão, a quem pelos vistos também falhou a certeza, ligou para alguém a querer tirar a coisa a limpo. Alguém esse que respondeu por si, meu caro, e, em nome de outro, em seu nome, testemunhando por si, que é outro, ventriloquando a voz que é sua mas ainda assim não é propriamente sua, como nenhuma voz é propriamente de ninguém, usou dos poderes infinitos do simulacro para persuadir o Sr. Mourão de que falava consigo e de que ouvia de si, meu caro, a resposta capaz de diluir todas as dúvidas. Não duvido, cela va sans dire, que uma resposta efectivamente sua, inconfundivelmente sua, irremediavelmente sua, trouxesse o selo e a bênção da certeza aonde a certeza estava em falta. Não, o ponto onde o simulacro se denuncia é outro. Qual? Uma frase, uma frase , esta frase: «É uma pena aquilo estar deserto.» Foi a falha do mistificador. Imaginá-lo a si, meu caro, com pena de aquilo estar deserto. Ou talvez não fosse falha, talvez o impulso gracejador, a compulsão jocosa tenha tomado conta de quem, não porém sem pena de aquilo estar deserto, quis pôr à prova a destreza do Sr. Mourão na discriminação de identidades. Não lhe parece isto indício suficiente para o pôr no rasto do inescrupuloso ficcionista? E, com efeito, não deixa de ter graça essa malícia de supor o meu caro com pena de que aquilo esteja deserto. Que, aliás, não está, cela va aussi sans dire.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

Eco lógico























- Aquém não há quem!
- Nem além há!
- Sem ninguém, ninguém vem!
- Quem vem?
- Vem alguém sem ninguém.
- Vem?
- Sim, vem assim.
- Assim, com a água?
- Com a mágoa?
- Com o som do sim.
- O eco que ecoa.
- E canta.
- Eco ecoador.
- Cantador.
- Que coa.
- Os passos.
- A dor.
- Que bate contra a parede!
- Que cai no chão!
- E ressoa no tecto!
- A sala vazia.
- Quem está?
- Quem está lá?
- Aí, quem está?
- Quem está aí, está?
- E aquém?
- Quem?



-



















- Aquém não há quem!
- Nem além há!
- Sem ninguém, ninguém vem!
- Quem vem?
- Vem alguém sem ninguém.
- Vem?
- Sim, vem assim.
- Assim, com a água?
- Com a mágoa?
- Com o som do sim.
- O eco que ecoa.
- E canta.
- Eco ecoador.
- Cantador.
- Que coa.
- Os passos.
- A dor.
- Que bate contra a parede!
- Que cai no chão!
- E ressoa no tecto!
- A sala vazia.
- Quem está?
- Quem está lá?
- Aí, quem está?
- Quem está aí, está?
- E aquém?
- Quem?

Raspar de novo, nº8*




Bruce Nauman, Double Poke in the Eye II

* 11.000.000 de unidades de informação p/segundo, administrar as perdas.

Raspar de novo, nº7




Bruce Nauman, 100 Live and Die

Raspar de novo, nº6




Bruce Nauman, Five marching men

Raspar de novo, nº5





Bruce Nauman, The true artist helps the world...

Um tipo de raciocínio de que eu, por acaso pá, gosto à brava

Se A, num dia qualquer, defendeu que se deve poder vender livremente revistas pornográficas, então A está obrigado a fazer um banzé sempre que a polícia aparece a chatear o homenzinho daquele quiosque onde se vende revistas pornográficas, mesmo que a polícia o vá chatear por qualquer coisa que nem tenha nada a ver com revistas pornográficas1. Há ainda a pergunta típica que este tipo de raciocínio (de que eu gosto à bruta, repito) adora fazer: então e agora, Sr. A, agora não tem nada para dizer, Sr. A? Recentemente, o léxico deste tipo de raciocínio foi enriquecido com a noção de que A é umcruzado” da venda à balda de revistas pornográficas. Ou melhor, com o conceito, que isso então é que eu me pelo por ele, de que A é umcruzado” da rebaldaria.

1 Atenção, o gajo não tem de se chamar A nem a coisa tem de ser com revistas porno. O que interessa aqui é o tipo de raciocínio, a ver se me entendem. É a mesma coisa se o marmanjo se chamar S e tiver defendido a venda livre de fósforos com a cabeça do outro lado ou porta-chaves com a cara do coiso, como é que ele se chama? Esse.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

Afortunadamente

A propósito de imunidades da língua, notabilíssima expressão, vale sublinhar que nos blogues se escreve como se não escreve nos jornais. Melhor, quero eu dizer. É possível por exemplo, usar com graça e propósito o advérbio desafortunadamente.

Adivinha (reencaminhada )

(Posta-restante)

À superior atenção do Luís Mourão:

Num mundo superiormente letrado — seguramente aquele que se seguirá à aplicação, plena e eficaz, do chamado processo de Bolonha —, seria possível, perdão, será possível, aos almanaques de jornal ou aos blogues como este, inserirem desafios, na forma de adivinha, em vez de tópicos de reflexão:
Com que razão se pode afirmar que o sentido crítico do moderno entrou na literatura portuguesa quando Camilo, nas vésperas da publicação em livro do Crime do Padre Amaro e numa carta ao Visconde de Ouguela, disse de Eça: “Este rapaz vem tomar a vanguarda de todos os romancistas. É um admirável observador e conquanto faça pouco caso das imunidades da língua tem a arte de fazer admiráveis defeitos”?

(Note-se o termo vanguarda, mas não é por isso. Que me dizem a “imunidades” da língua? É possível fazer pouco caso delas e ainda assim fazer coisas admiráveis, sobretudo para quem fazia muito caso das “imunidades” da língua? E que arte é essa que produz coisas admiráveis pela violação, pela ignorância ou pelo desdém das “imunidades” da língua?)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

O herdeiro

Não, pensando melhor, ali, ainda ali , é que está o herdeiro. Aquele que vem depois e recebe, e estuda o que recebe, e continua o que recebe, e torna o que recebe melhor do que era antes de ele o receber, esse é que é o herdeiro. Esse.

Cum feris ferus


Palazzo del Bufalo, Roma.
A notícia é de ontem. Um pároco de Valência, catedrático de teologia, publicava num folheto dominical, Aleluya, o seguinte comentário: “Se quejaba una mujer en un periódico de la agresión que sufre la mitad de los humanos, o sea las mujeres, por parte de la otra mitad. Prueba de ello son las 63 mujeres muertas a manos de sus parejas en España en el año 2005. Sin negar que ello sea verdad, conviene hacer dos precisiones. Primera: nadie ha confesado qué hicieron las víctimas, que más de una vez provocan con su lengua. (El varón, generalmente, no pierde los estribos por dominio, sino por debilidad: no aguanta más y reacciona descargando su fuerza que aplasta a la provocadora). Queda además una 2ª observación: ¿No han tenido en cuenta que hubo en España, durante el mismo periodo, 85.000 abortos reconocidos? Por cada mujer muerta a manos de un hombre hubo 1.350 niños asesinados por voluntad de sus madres. Es peor”. Chama-se o dito padre Gonzalo Gironés. Como diria a Clara, como diria o Groucho: “arre, que asco!”. Soubemos, entretanto, que o arcebispo de Valência interrompeu “exercícios espirituais” em Xábia para acolher os participantes no III Congreso Internacional sobre Víctimas del Terrorismo. Aguardamos, ainda, que as mitras acudam com explicações, sempre o fazem, sempre argumentam terem sido mal interpretadas as suas palavras.

Foi má ideia

Eu tinha passado, a estas horas impróprias, pelo sítio do Francisco só para descontrair e eis senão quando... Foi má ideia.
É evidente que, ao contrário do que se profetizou, este assunto não vai morrer tão cedo. Está a morrer gente antes de morrer o assunto.
Atenção: só porque eu disse três vezes "morrer", não significa que esteja a pensar no embaixador do Irão em Lisboa. Não. Quando eu penso nele e na cambada a que ele pertence, penso, não três vezes na mesma palavra, mas em três palavras que em português é como se fosse só uma. Ah sim, eu também sei fazer contas!

Stelarc: a terceira mão


«Our actions and ideas are essentially determined by our physiology. We are at the limits of philosophy, not only because we are at the limits of language. Philosophy is fundamentally grounded in our physiology . . .»

terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

Porquê a inteligência movida por Ibsen? (a explicação)

Da inteligência quando movida por Ibsen, 2

It is only the naïf who goes to the creative artist with absolute confidence in receiving an answer to his “What does this passage mean?”

George Bernard Shaw

Da inteligência quando movida por Ibsen, 1

In no case does the difference between the will and the intellect come out more clearly than in that of the poet, save only that of the lover.
George Bernard Shaw

Se as penas ...

Se as penas com que Amor tão mal me trata
quiser que tanto tempo viva delas
que veja escuro o lume das estrelas
em cuja vista o meu se acende e mata;

e se o tempo, que tudo desbarata,
secar as frescas rosas sem colhê-las,
mostrando a linda cor das tranças belas,
mudada de ouro fino em bela prata;

vereis, Senhora, então também mudado
o pensamento e aspereza vossa,
quando não sirva já sua mudança.

Suspirareis então pelo passado,
em tempo quando executar-se possa
em vosso arrepender minha vingança.


Luís de Camões

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

Problema de cão

§ 1
Proponho-me denominar problema de cão o problema que embaraça o cidadão compelido — por outro ou por si mesmo, pelas circunstâncias ou pelo hábito — a decidir se determinado “enunciado alheio” (EA) que lhe foi dirigido pertence ou não ao conjunto que, por comodidade e provisoriamente, designarei “enunciados humorísticos inofensivos” (EHI).
a) O conjunto dos EHI não é um subconjunto do conjunto dos “enunciados humorísticos” (EH), pois tal pressuporia que EH abrigaria outro subconjunto, o dos “enunciados humorísticos ofensivos” (EHO), o qual naturalmente não existe (pode existir, porém, artificialmente) enquanto subconjunto.
b) A necessidade da alínea anterior ficará óbvia lá mais para diante.


§2
A denominação problema de cão tem razão histórica, quer dizer, deriva de uma história contada por Fania Pascal, que conheceu Wittgenstein em Cambridge, em 1930. Dele conta este episódio: “I had my tonsils out and was in the Evelyn Nursing Home feeling sorry for my self. Wittgenstein called. I croaked: ‘I feel just like a dog that has been run over.’ He was disgusted: ‘You don’t know what a dog that has been run over feels like.’”
Harry G. Frankfurt discute este gracioso episódio com outros propósitos. (Daí a ilustração escolhida.) Mas não deixa de formular o problema de cão: Wittgenstein estaria a fazer graça, para animar a pessoa a quem se dirigia, ou a pessoa a quem se dirigia tinha “boas razões” (cf. §3) para presumir que Wittgenstein não estaria a fazer graça mas a censurá-la por dizer um disparate? (Daí o cão, daí o problema. )

§3
O que são “boas razões” ou que razões poderão ser “boas” no contexto particular em que o cidadão decide que certo enunciado alheio não pertence a EHI? (Cf. § 4)

§4
Proponho que nenhuma razão pode ser reputada “boa” no contexto particular em que o cidadão decide que certo enunciado alheio não pertence a EHI. Apenas podemos descrever simulacros de “boas razões”.
Primeira descrição: o cidadão em causa testemunhou actos do enunciador em causa (ou seja, no exemplo oferecido, Wittgenstein) em que se repete o mesmo traço, deduzindo da repetição um princípio de plausibilidade que autoriza a interpretação. Na verdade é ao contrário: a plausibilidade requerida é que constitui repetição a sucessão de traços. Neste sentido, o problema de cão deveria ser redescrito como o problema de Séneca (cf. § 5).

§5
O mais frequente simulacro autorizador da decisão de exclusão de EHI deixa-se redescrever pelo lugar-comum “quem não te conhecer que te compre”.

(Continua.)

Deus me perdoe se o ofendo, mas que asco!

"Ora por mais voltas que demos ao assunto é difícil fugir ao essencial: a "guerra" dos cartoons não foi desencadeada por um obscuro jornal dinamarquês, foi orquestrada por todos os que, no mundo islâmico, mesmo sem serem islamistas, recusam uns a modernidade, outros a democracia, a maioria ambas. A "guerra" foi desencadeada contra nós, os cartoons foram apenas pretexto ..."

José Manuel Fernandes, o que pedia bom senso, grita agora que fazem guerra contra "nós", no Público, hoje mesmo, que asco! Quem somos "nós" afinal? Os sensatos? Os apoiantes do ministo Freitas? Os que dele escarneceram? O clube de fãs da Merche Romero? Os sócios do Belenenses? Arre, que asco!

domingo, 12 de fevereiro de 2006

Raspado de novo, nº4*



Bill Viola, The Eye of the Heart

* Raspar todas as imagens, acumular resíduos.

Raspado de novo, nº3



Bill Viola, Going forth by day: first light

Raspado de novo, nº2


Bill Viola, Emergence

Raspado de novo, nº1


Bill Viola, The Quintet of Remembrance

Aos que vierem:

(Isto é um memorandum: na eventualidade de isto se tornar um blogue.)

Os que vierem deverão saber que são herdeiros e hão-de reclamar a herança. (Aprimorar a noção de herança.)
Duas componentes:
A escrita requer uma ideia, mas a ideia de escrita é uma forma. Conversa, carta, bilhete, aforismo, citação: a forma organiza, produz — a forma antes da vulgar expressão.
A escrita produz acontecimentos: episódios, peripécias, intriga — além da vulgar expressão.


Os que vierem saberão reclamar a herança. Eu fico por aqui.

Valha-me Deus! é lindo!

A diferença entre as criaturas mitológicas de outros países e as criaturas mitológicas brasileiras é que as primeiras têm poderes especiais e as segundas são só deficientes físicos. Se você visse um saci entrando no metrô se sentiria constrangido a dar o seu lugar pra ele - o que nunca aconteceria com o lobisomem, por exemplo, ou com o Drácula.
Alexandre Soares Silva

Lindo, não é? Sabem, claro, que o saci é preto, usa touquinha e só tem uma perna. Sabem isso, claro.

sábado, 11 de fevereiro de 2006

A mão de Deus

Espero que aqui neste blog não haja preconceitos contra o futebol e um gajo possa elogiar à vontade o maradona e toda a sua sabedoria argentina a respeito de suínos.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2006

Deus me perdoe se a ofendo, mas que asco!

«Freitas do Amaral esteve bem ao demarcar o Governo português e Portugal do conteúdo insultuoso e do propósito estigmatizante de todos os muçulmanos visado nas caricaturas. Fez o que o Governo de direita dinamarquês deveria ter feito inicialmente e não fez. Por incompetência, arrogância e por calculados interesses políticos internos - dependente, como é, do apoio da extrema-direita racista e xenófoba detrás do jornal que publicou as caricaturas. Incompetência e arrogância que levou o primeiro-ministro dinamarquês, Anders Fogh Rasmussen, ao extremo de durante meses recusar receber os embaixadores de países muçulmanos - e logo ali podia ter acabado com o problema, distanciando-se dos propósitos ofensivos dos cartoons e também rejeitando, como é óbvio, qualquer ingerência ou sanção contra o jornal (o que eventualmente apenas caberia aos tribunais). Freitas do Amaral fez o que a Europa deveria ter feito mais cedo.»

Ana Gomes, no Público, hoje mesmo, que asco!

Eu hoje acordei:

mais cedo, menos áspera e agradecida.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2006

Sente-se! ouça!

— Sente-se aí e ouça, se não se importa.
— !!
— Não resista! sente-se! ouça! Quero transmitir-lhe uma ideia, ideia simples, coisa de nada, porém importante. Demasiado importante para ficar aqui sozinha, pendurada no cérebro de quem a concebeu, e não me refiro ao meu: sabia que é impossível determinar com rigor o cérebro que concebeu uma ideia...? são tantos os que se apresentam a concurso, entende?
— !!
— Não resista! ouça! A ideia é… a respeito da blogosfera…
— !!
— Sente-se! ouça! É lastimável que a blogosfera abrigue ideias obnóxias — mas inevitável. A tendência forte dos bloguistas é para fazerem nos blogues o que fariam noutros lados, se tivessem lados, outros, onde fazerem alguma coisa. Isso, apenas isso explica a frequência com que se vê escrito: este debate não leva a lado nenhum. Dito assim, por escrito, com veemência, concisão, como diagnóstico seguro e inexorável do pior cancro dos debates: não levarem a lado nenhum. Estes teleológos de bolso acham que tudo se avalia pelo fim, e ficam à espera que acabe para avaliarem: com a pressa, dão em profetas minúsculos, declarando de antemão que o fim não presta, ou não chegará nunca.
— !!
— Sente-se! nada de objecções! não lhas permito! O debate na blogosfera, a bem dizer nenhum debate se pode avaliar pela eficácia de produzir resultados: que lugar é esse onde se pretende chegar? Conclusões? Consensos? Descobertas? Todo o debate, meu caro — não se levante, espere um bocado, por favor —, todo o debate é movimento, acção, deslocação. Os mesmos blogues deviam ser mais acção do que expressão, mais intriga do que opinião. Acontecer, fazer acontecer: produzir factos, inventar! Delicio-me com pontos de admiração, o senhor não? O debate é um agregado de factos antes de levar a algum lado: é alimentá-lo enquanto dura, acarinhá-lo, tomar conta dele, não o deixar degenerar, meter-se em drogas, perder dinheiro no jogo ou com mulheres… perdão, divago, não se vá embora, ouça, sente-se, não resista… ainda não acabei, espere, e os jornais…

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006

Deus me perdoe se o ofendo, mas que asco!

«Dois anos depois (e muita pancada levada em tudo o que era blogue nacional, como se tivesse criticado o meio em si, o que obviamente não sucedeu...), no momento em que vejo Vasco Pulido Valente chegar à blogoesfera, não resta palavra sobre palavra desse meu texto. Engoli-as todas, uma a uma, humildemente. Confesso que há sempre um bom bocado do meu dia que é passado a saltitar de blogue em blogue, lendo o que pensam aqueles que respeito ou admiro, ou descobrindo talentos desconhecidos. Tenho a minha lista de favoritos. E já tive, heresia das heresias, a tentação de criar o meu próprio blogue...»

(Pedro Rolo Duarte, no Diário de Notícias, hoje mesmo, que asco! Levou "pancada" há dois anos por causa de um texto em que defendia que os blogues eram só para quem não tinha lugar nos jornais. Agora confessa a tentação de criar o dele... E aquela "blogoEsfera", santo Deus, que asco!)

Sejamos claros

Sejamos claros. Se eu tivesse, digamos, um blogue, não tolerava piadas. Não as faria eu próprio; de resto incapaz por natureza do acto piadético. E coagia eventuais colaboradores a absterem-se do exercício. Não que despreze a liberdade de expressão. Não desprezo. Prezo, e muito. Sejamos claros: apenas entendo que as piadas não são formas de expressão. (Tal como o arroto e o traque não são. Nem mais. Em tempos disseram-me que uma ventosidade permitia identificar a pessoa que se descuidou: talvez engarrafassem o gás, depois ia para o laboratório. Também me disseram que da poia do cão no passeio se podia chegar ao respectivo dono: e sabe Deus como o Eça ou o Rui Zink usariam a nova possibilidade num romance dos deles.) São formas desvinculadas de expressão. Onde não existe vínculo entre o que se diz e a pessoa que diz, esta desobrigada de defender ou acreditar no que acaba de dizer: contenta-se com o riso dos outros, a tola. Meses de permanência naquele coio de farsistas não chegaram para os convencer da verdade e da urgência deste repúdio. Que eu reproduzia o argumento de Platão contra a mimese e a poesia… Pfff… Sejamos claros: professores… pfff!!!

Entretanto...



... não acredito que o negrume moral se não exprima na degradação dos traços. Estou de acordo com aquele franciscano (ou seria dominicano?) que se referia a certo lente de Coimbra, reputado badocha, dizendo que o arcaboiço do corpo exteriorizava a envergadura do espírito (ou seria ao contrário). Mas isso era elogio. E sincero (embora exagerado, senão errado). Eu prefiro o desprezo; ou, como sempre dizia um dos casmurros, o menoscabo. E aí, Deus me perdoe se o negrume moral e a decadência intelectual se não se exprimem na degradação dos traços: sem precisão de caricatura.

Vamos?

Gustavo, diz-me, vais... vamos à manifestação?

Conto tonto

A vida é só uma sombra móvel.
Pobre actor
Que freme e treme o seu papel no palco
E logo sai de cena. Um conto tonto
Dito por um idiota — som e fúria, signi-
Ficando nada.


(Tradução de Augusto de Campos; do Macbeth, claro.)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2006

Deus dá a barba a uns e a vergonha a outros!


Não, não, não esclareça nada, deixe isso para os outros.
Asco, sim, asco daquilo mesmo que ali se vê. Ou pensa que lancei mão da "arma visual" para ornamentar? As imagens matam mesmo? A degradação dos traços, santo Deus! a degradação dos traços...

Esclarecimento


É no que dá isto dos blogues, ter que esclarecer. Mas vá, querida Clara: decerto o que lhe causa asco é o desarrumado da prosa, a confusão de noções e conceitos, a lógica torcida, as muitas gralhas, a pontuação...

Deus me perdoe se o ofendo, mas que asco!

[...] é legítimo caricaturar o sagrado? Em princípio, o sagrado está acima de tudo o mais, e em particular acima das caricaturas, sejam elas quais forem. Aquilo que é sempre uma degradação dos traços poderá estar sujeito à arma visual? Estou convencido de que não, e, mesmo sem ser crente, acredito que o religioso é demasiado importante para que as pessoas façam sobre ele caricaturas. E isto envolve Maomé. Estamos perante questões que põe problemas essenciais. As imagens matam e e o religioso não pode morrer. Pelo menos, não deve.

Eduardo Prado Coelho, Público, hoje mesmo, que asco!

É nestas alturas...

... que custa resistir a abrir um blogue. Afinal, valerá o esforço? ... para lançar uma campanha pública para zurzir, pela via da caricatura e afins, duas figuras: a licenciosidade do ministro Freitas do Amaral e a deriva sem limites do cronista Prado Coelho. No blogue, acho que seria sem limites, sem bom senso, sem responsabilidade... Por outro lado, há sempre limites: os da imaginação, os da língua, os da natureza, os da técnica... os do tédio! Ai, o tédio...

Outra verdade revelada

Finalmente! alguém que não receia dizer a verdade. Só não sei se "desfazer-se" não será exagero. E espero bem que não estejam a remexer-se para melhor. A bem dizer, aquilo está a desfazer-se desde o início.

A verdade revelada

E eles se esforçam com o assunto das caricaturas... Nunca os vi tão sérios, tão solenes, tão palavrosos. Até o piadético mor, valha-nos Deus. Mas é compreensível, por outro lado. A verdade ainda não tinha chegado. Só há bocado foi revelada pela pena clarividente do cronista. Eis o passo final, conclusivo, o remate da crónica de hoje do lúcido EPC: «Mas devemos sublinhar um aspecto: a reacção muçulmana faz parte do confronto entre a cultura muçulmana e a cultura ocidental. É a guerra essencial entre duas culturas: entre o fundamentalismo, que não aceitará nunca que as imagens ponham em causa a realidade religiosa, e a cultura ocidental, que vai além de todos os valores e é cada vez mais um universo onde tudo é possível e estamos à mercê da deriva sem limites.»
Como é possível que ninguém tivesse percebido isto? E o perigo, o anúncio do perigo? Sim, tudo é possível, estamos à mercê da deriva sem limites... sobretudo os blogues, raios os partam. Quando põem os olhos na imprensa séria, responsável e sensata, hein?

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2006

Tentações, incompreensões

Há mais de meio ano que peço a Deus que me livre da tentação de abrir um blogue. (Também eu resisto bem a tudo menos às tentações.) Em todo o caso, nunca publicaria nada que eu próprio tivesse escrito. Não, apenas citações, coisas que outros tenham dito ou escrito e mereçam ser lembradas e difundidas. Um blogue antológico. Não propriamente um blogue de antologia. Já há muitos a queixarem-se de que os não lêem com o cuidado requerido. Que os não compreendem…. Terrível, esta angústia da incompreensão. Ou da insuficiência. Será tão importante assim, para quem, por impulso genuíno, escreve, ser compreendido?

Dez coisas para fazer antes de morrer

Mas, se o tivesse, era para lá pôr coisas como a deste académico brasileiro, Alcir Pécora, a quem pediram um dia que enumerasse dez coisas para fazer antes de morrer, tendo ele respondido isto, que apanhei algures, não posso dizer onde, em vias de ser difundido de forma aparentemente imprópria:

Mudar-me para um lugar habitado por gente capaz de auto-governo (1);

ignorar que governantes ignorantes usam a palavra académico para produzir ofensa, querendo desqualificar alguém como inútil ou incapacitado para a acção (2);

encontrar intelectuais não obnóxios, isto é, que se recusam a pertencer ao corpo místico do reino ou a prestar servidão voluntária a aparelhos partidários (3);

torcer para se esgote o estoque de malandragens com a dialéctica, as quais pretendem justificar a ausência de ética do governo, encobrir a corrupção do governante, ou descobrir algum charme na miséria dos governados (4);

dormir em paz no túmulo do samba, do axé, do pagode, do forró, do carnaval, da cerveja, da macumba e do churrascão (5);

Como crítico literário, gostaria de assistir a alguns milagres no campo da minha profissão:

não topar com Caetano Veloso ou Chico Buarque em nenhuma antologia da poesia ou da prosa brasileira (6);

não achar a palavra jovem ou a palavra geração em nenhuma antologia ou artigo de literatura contemporânea (7);

leccionar num departamento que não subordine o estudo da literatura à ideia de nação ou nacionalidade (8);

ler um suplemento cultural que não tome história, filosofia ou sociologia como melhor ciência ou ficção do que a literatura (9);

escrever crítica de obra sem ser acusado de inimigo do autor, de inimigo dos amigos do autor, de inimigo da instituição do autor, ou enfim, de inimigo tanto de tudo, quanto de todos (10).

domingo, 5 de fevereiro de 2006

Declaração inicial

Sim, confirmo: Deus me livre de ter um blogue!