quinta-feira, 31 de maio de 2007

Intervalo

Tenho estado ocupado com um assunto. Diz-se assim? "ocupado com um assunto"? Se calhar quando não se quer declarar o mesmo assunto, ocultá-lo de curiosos, de gente que pergunta: "O que estás a fazer?" Ou: "Onde tens andado, que não apareces há que tempos?" (Que bem ali fica a vírgula antes do "que" explicativo… diz-se assim? "explicativo"? Ou será causal, consecutivo…?) Adiante que eu sei qual é o assunto, e até digo qual é o assunto: coligir um pequeno corpo de textos literários sobre o tema do abandono. Mais particularmente: textos onde se contam histórias de gente que abandona o que não consegue interpretar. Gente que desiste de interpretar e vai embora. Gente que vai embora sem desistir de interpretar. E gente que vai embora, que abandona, aquilo mesmo que se dá sem esforço, de graça, oferecido em meio duma estrada pedregosa. (A máquina do mundo de Drummond é isto, como sabem: um sujeito cansado de buscar encolhe os ombros e segue adiante quando máquina do mundo se abre à sua frente deixando ver a causa primeira de todas as coisas.) Não sei, porém, se isto é abandono. Deve poder dizer-se assim, uma atitude de abandono: o sujeito abandona-se, e segue. Há um abandono passivo, e há um abandono activo. Este segundo é deixar, largar de vez, partir, ir embora. O outro, pronominal, abandonar-se, pode ser o oposto: entregar-se, deixar-se ir, render-se, ceder. O enigma que pede decifração depende em boa medida, senão em toda, do sujeito que se abandona; já escapar ao enigma que exige decifração é coisa que exige abandono. Passivo e activo, portanto. Mas isto pouco ajuda à tal colecção de textos sobre o abandono. O único que me ocorre agora é Bartleby. O advogado que conta a história abandona Bartleby no escritório depois de ter decidido que ele lhe estava destinado e que era sua missão na vida acolhê-lo ali, naquele escritório. Por isso, num sentido muito preciso, não abandonar Bartleby implica, para o advogado, abandonar o próprio escritório: e deixá-lo entregue a Bartleby, que nele se abandona até que alguém chega e o expulsa de vez. Quem leu sabe que abandonar o escritório significa, para o advogado, abandonar o esforço de interpretar Bartleby. E vice-versa. Não é possível ocupar o mesmo espaço e renunciar à interpretação. E não é possível interpretar. É preciso ir embora. Largar de vez. Ir embora. Abandonar para pôr termo à compulsão interpretativa. Enfim, isto muito resumido. Só para dizer que tenho andado ocupado com este assunto, pelo que a história do blogue que acabou mas com funcionários do ministério das finanças terá de ficar para outro dia. Isto, claro, se o blogue não acabar antes.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

Amanhã: a mesma história dum blogue que acabou mas com funcionários do ministério das finanças

História dum blogue que acabou

Agora vamos supor um mundo bizarro em que os professores de humanidades estivessem, por qualquer motivo insondável, equiparados aos judeus sob o nazismo. Forças especiais notavelmente implacáveis perseguiam-nos, prendiam-nos, faziam-nos desaparecer dos seus locais habituais e reaparecer algures, em qualquer coisa como campos de concentração, onde eram obrigados a permanecer e a… concentrarem-se: iam ensinar primeiras letras e alguma cultura geral aos futuros mestres do mundo, um bando de macacos sobredotados e já treinados em diversos outros exercícios por especialistas de outras áreas. Acontece, então, que, algures em Lisboa, uma menina de doze anos, filha de um catedrático de Antropologia e de uma doutorada em História Contemporânea, ambos presos e deportados, escapa despercebida e aninha-se, coitadinha, escondida, no sótão; com um pequeno computador portátil consegue aceder à rede sem fios do vizinho, por sinal o mesmo chefe das forças especiais notavelmente implacáveis. Beneficiando desse abuso, a menina começa a escrever um blogue. Os primeiros posts impressionam pela lucidez, pela pertinência, pela relevância dos temas e respectiva organização, pela coerência do pensamento e, sobretudo, pela limpeza ortográfica, tão do agrado dos jornalistas que escrevem "paralizar" onde deviam escrever "paralisar". O blogue começa a ter sucesso; gente do ministério da educação inquieta-se: a autora, sendo menina e nova, só podia provir duma escola privada, dessas que se esmeram. As forças de segurança, pelo seu lado, receiam que tamanha lucidez e tão aplicada capacidade de escrita tarde ou cedo, mas talvez cedo, se mobilizem para a denúncia da situação a um tempo misteriosa e iníqua dos professores da área de humanidades. Começam as buscas. Informáticos particularmente dotados — os mesmos que treinaram os referidos macacos na manipulação de computadores — tentam rastrear a origem do blogue e do respectivo correio electrónico. Depressa chegam, por meios lá deles, ao endereço do chefe das forças especiais notavelmente implacáveis. O escândalo rebenta! Seria ele a fazer-se passar por uma menina de doze anos? O guarda-fatos não exibia roupa feminina, mas ele podia escrever nu: seria até mais perverso. Por outro lado, a lealdade do oficial parecia comprovada, acima de suspeita razoável… O certo é que cortada a ligação à Internet, o blogue pára. Como se tivesse sido bloqueado. Blogue interrompido, estão a ver? Pela cidade desata a correr a pergunta: "É verdade que o blogue acabou?" (O blogue da menina era já familiarmente conhecido como "o blogue".) A angústia cresce. Não sendo possível — nem legítimo — prender o chefe das forças especiais notavelmente implacáveis, o governo decide restabelecer a ligação à Internet em casa do oficial, mas restringindo-lhe o uso do computador, a que apenas podia aceder sob vigilância apertada, que ele próprio, aliás, já tinha solicitado por ocasião das primeiras suspeitas (a fim de provar sem dúvida a sua inocência). O blogue não tardou a recomeçar. E pela cidade a correr a pergunta: "Então afinal o blogue ainda não acabou?" O problema cresce. Os informáticos particularmente dotados coçam a cabeça. Tudo parece encaminhar-se para o impasse. Até que a menina, como seria de esperar, comete um erro. Um pequeno erro, um deslize sem importância, nem sequer um crime, ou nem sequer um crime grave. Aborrecida, incapaz de extrair do blogue toda a diversão e todo o ânimo que a sua difícil situação requeria, começa a sacar músicas e filmes da Internet. Usando a rede do vizinho, claro. O chefe das forças especiais notavelmente implacáveis cedo se vê confrontando com uma conta descomunal: ultrapassara largamente o máximo de tráfego de download permitido. Ora, não havendo qualquer filme no computador dele, a que acedia, como se sabe, debaixo de rigorosa vigilância, ficava provado que a ligação era insegura. Alguém se servia da rede sem fios para disseminar a inquietação e inspirar a piedade dos cidadãos. De novo chamados, os informáticos particularmente dotados fazem o que, segundo alguns, deviam ter começado por fazer: encriptam a rede com uma chave virtualmente impenetrável. A menina de doze anos, no seu escuro sótão, perde o acesso. Sem conhecimentos informáticos, sem especial imaginação, nunca mais poderá publicar posts, nem sequer a dizer que nunca mais poderá publicar posts. A sua situação é inteiramente desesperada, mas ninguém sabe. O blogue pára, acaba, suspenso brutalmente, mas ninguém repara. Nunca mais ninguém se lembrará dele, e a menina mais dia menos dia terá de arranjar outro meio de.

Nunca seremos cotas*!

— Lá andam outra vez a malhar na escola…
— São os cotas, meu, são os cotas. Lê as indignações a propósito desta coisa bizarra de não avaliar erros ortográficos não sei em que ano: estão cheias de advérbios, "hoje", "agora", "antes".
— Bem observado, são os cotas, meu: "no meu tempo levava nas orelhas se trocava um s por um z, agora os meninos brincam e têm todos os direitos"… Aproveitam qualquer merdice para anunciar que, quando eles morrerem, vai ficar tudo perdido e estragado e arruinado e o mundo entregue à canalha infantil e adolescente.
— São os cotas, meu, são os cotas. Invejosos como o raio, acham-se muito sabidos e são afinal broncos ao ponto de repetirem o lugar-comum mais velho do mundo…
— Isso, essa coisa de "no meu tempo…." por oposição a "agora". "No meu tempo" é que se aprendia, "hoje" ninguém sabe nada… isso data de quando? da Idade Média? Ou já havia cotas em Roma?
— Os cotas, meu, os cotas estão por todo o lado e em todas as épocas… Deve ter havido muito pterodáctilo cota. E os de hoje, então… Quantos deles sabem ao certo o que é ortografia? quantos não confundem grafia com ortografia? quantos acham que a língua morre com um erro de ortografia? quantos não se embaraçam na colocação dos pronomes? quantos não trocam alegremente um conjuntivo por um indicativo…?
— São cotas, meu, são cotas, já lhes falha a cabecinha…
— Também vamos ficar assim quando chegarmos à idade deles?
— 'Tás parvo! nós nunca chegaremos à idade deles, porque nós não temos idade, e quando lá chegarmos, já não vamos saber que tivemos um dia a idade que temos hoje, e por aí fora. Nunca seremos cotas!
— 'pera, meu, 'pera aí! Não será quotas?

*Este blogue ainda não acabou.

Longa vida aos espirituosos!

*


War is God's way of teaching Americans geography.

terça-feira, 29 de maio de 2007

Este blogue ainda não acabou

— Nota que a afirmação do título pode ser enganosa, ou contingente, derivar por exemplo de alguma gralha… quem te garante que o ponto de interrogação não caiu?
— Sim, está-se a ver… o ponto de interrogação cansava-se de aparecer a repetir a mesma pergunta… sim, porque já foi feita, como sabes. Isto aliás devia chamar-se a náusea, ou a náusea não acabou, Deus nos livre…
—A pergunta deve ser repetida. Aliás, é sempre repetida. De cada vez que visitas um blogue, afinal vais verificar se acabou: e chegas lá e perguntas, sem te dares conta, "este blogue não acabou?"
— Pensei que ias dizer que, de cada vez, deixo subentendida a afirmação "olha! este blogue não acabou".
— Gaita! mas não vês que é o mesmo? Um blogue está sempre à beira do fim, do termo, ou melhor dito, da interrupção. Pode acabar a qualquer momento, porque não há nenhuma regra inerente que lhe imponha um fim.
— E por outro lado nunca acaba, não é mesmo? Quem quer que lhe ponha fim, abandona-o…
— Agora és tu que repetes
— E devo repetir: quem quer que lhe ponha fim, abandona-o constituindo-o totalidade separada, livre, autónoma, o que quiseres. Destinada ao esquecimento, muito provavelmente, mas fechada, completada, organizada para que possa ser tomada como um todo. É uma nova possibilidade, aliás uma imensa possibilidade.
— Mesmo que o fim tenha sido acidental…?
— Sobretudo nesse caso.
— Então estamos de acordo! É virtualmente impossível acabar com um blogue.
— Eu diria estruturalmente impossível.

domingo, 27 de maio de 2007

Se este blogue não acabou, talvez nos tenha abandonado

— Acho que percebo a tua objecção.
— Não é objecção, é uma visão, digamos, alternativa. Aceito que o blogue é interminável, que não acaba, ou pode não acabar, ou não acaba por si mesmo. Acaba ou pára por acidente ou por abandono.
— Sim, isso também eu aceito. Mas dizias…
— Dizia que assim regressam à cena as pessoas… a qualquer momento aquele que o abandonou regressa, acarinha-o, e fica mais uns tempos por ali… quem é "aquele", senão uma pessoa?
— Mas como querias que fosse? os blogues são escritos por pessoas, ou não?
— Olha quem fala…
— Em regra, homem, em regra. Falo de situações regulares, blogues de vivos, de gente viva…
— Aí tens a distinção, vivos ou mortos, é muito diferente. Vivos são pessoas, e aquela frase sugere que as pessoas se condoem dos blogues abandonados e regressam para os reconfortar. Quando é precisamente o contrário que se passa.
— O contrário!? Precisamente o contrário!? São os blogues que regressam para reconfortar as pessoas que os abandonaram? Isso não tem sentido!
— Claro que não, o "precisamente" era expletivo. Se trazes pessoas à cena do blogue, então é mais urgente dizer que são os blogues que as reconfortam. Ou elas esperam do blogue que as reconfortem. Melhor explicado: as pessoas "ficam por ali", não abandonam o blogue ou regressam depois de abandono provisório, porque têm medo de que seja o blogue a abandoná-las. E para sempre, sem regresso viável.
— Quer dizer que, metendo em cena as pessoas, não há diferença entre abandonar o blogue e ser abandonado por ele?
— Alta perspicácia, meu caro.

sábado, 26 de maio de 2007

Mas este blogue não acabou?

Suponhamos que não. Suponhamos que este blogue não acabou. Este, pelo menos, não acabou. Uma suposição é uma suposição, quer dizer, um princípio de construção. (No restaurante, ou na televisão, diriam: uma suposição vale o que vale, procedimento de tautologia despectiva, por analogia com as sondagens, as declarações de um ministro ou os vaticínios da astrologia; persistem entretanto várias coisas, aliás muitas, que nem chegam a valer o que valem). Suponhamos, então. E a sério, se não acabou, sejamos sérios.

*

Une chose réussie est une transformation d'une chose manqué.

Donc une chose manquée n'est manquée que par abandon.

Paul Valéry, Tel Quel.


*

Ser sério, então (suponhamos), leva-nos a esta construção: nenhum blogue acaba, ou nunca se pode saber quando acabou. Apenas se abandona. Ou apenas se pode saber que foi abandonado. Mas nem sequer se pode saber com plena certeza que estamos a abandoná-lo: não, pelo menos, no momento do abandono, se se dá num momento.

Vá lá, sejamos sérios: a pergunta "mas este blogue não acabou?" tem de ser rescrita assim: "mas não é legítima a suposição de que este blogue foi abandonado?" (Resposta correcta esperada: raramente.)

(Aliás, quem poderia abandoná-lo?)

*

Un poème n'est jamais achevé — c'est toujours un accident que le termine, c'est-a-dire qui le donne au public.


Paul Valéry, Tel Quel.

Vá lá, sejamos sérios: a comparação não presta. O poema é dado ao público quando acabado, ou porque considerado acabado, ou porque abandonado pelo poeta. O poeta abandona o poema: fórmula precisa para descrever a publicação. O blogue abandonado, ao invés, é aquele em que ninguém publica, em que alguém cessa a publicação; abandonar o blogue significa deixar de publicar, renunciar a publicar, desistir de publicar.

E se o blogue continuasse sozinho? Um blogue é interminável, melhor dizendo, invulnerável ao abandono; a qualquer momento aquele que o abandonou regressa, acarinha-o, e fica mais uns tempos por ali.

Então, a pergunta "mas este blogue não acabou?" tem de ser reconsiderada como pergunta sem sentido. Ou impertinente. Sejamos sérios, carago.

sexta-feira, 25 de maio de 2007

Este blogue acabou?

— Um blogue! Um miserável blogue! É nisso que estamos?
— E há muito tempo, meu caro, há muito tempo. Também me custou a acreditar, mas foi isso que ouvi. Distintamente.
— E ainda por cima um blogue que acabou?!
— Essa parte já não é certa… Ou está sujeita a interrogação crítica, como diriam os outros. Se tivesse acabado, estávamos agora aqui? Poderíamos conversar um com o outro? Sei de casos, é certo, de personagens de romance que sobreviveram aos romances, e até de gente que conseguiu escapar de filmes, de peças de teatro, de pantomimas, e ganhar vida autónoma. Mas de blogues, não, não tenho notícia de autores ou personagens de blogue que existam fora do blogue.
— Porque não lês blogues. Olha que eu leio e encontro por lá quem explique onde esteve quando esteve fora… Há um fora, portanto.
— E depois? Que consolo tiras daí? Nem interessa se isto acabou ou não. Eu é que me sinto mesmo como o Buzz Lightyear quando descobriu que era apenas um brinquedo e não um ranger do espaço.
— Ora, ora… tu não podes saber como se sentiu o Buzz Lightyear quando descobriu que era um brinquedo. Aliás… se era um brinquedo, como é que sentiu fosse o que fosse?
— Achas que os brinquedos não têm sentimentos? Achas acaso que são como as personagens típicas, transparentes, com experiência pública mas nenhuma experiência singular, individual, pessoal? Como se fossem gregos, com qualidades genéricas, sem interioridade ou densidade psicológica…
— Os brinquedos têm interioridade e densidade psicológica?
— Aí tens! Fazes-me uma pergunta dessas e ainda acreditas que o blogue acabou?

sábado, 12 de maio de 2007

Longa vida aos espirituosos*?


Being a woman is a terribly difficult trade, since it consists principally of dealing with men.


Joseph Conrad


*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

segunda-feira, 7 de maio de 2007

Longa vida aos espirituosos*!


It is the child who is too fearful to make a nuisance of himself that is the child we should be really worried about.

Adam Phillips



*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

terça-feira, 1 de maio de 2007

Longa vida aos espirituosos*?


Não gosto da direita, porque ela é de direita, e não gosto da esquerda porque ela é de direita.

Millôr Fernandes




*Ordinariamente, chamam-se, à francesaespirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]