As pessoas morrem, os blogues não. Posto isto, que urgia sublinhar, trato de outro assunto: uma pessoa especialmente estúpida descuidou-se há dias na revelação de que confunde os espirituosos com os espirituais, acepção new age. Por vezes, em certas sitcoms, que agora se identificam pela "temporada" (extraordinário conceito!), aparece uma personagenzita que diz: "Eu considero-me uma pessoa muito espiritual…" Olha-se para o lado e lá está um pauzito de incenso a queimar, uma manta de riscas desbotadas e na parede uma fotografia dum indiano qualquer a pedir paz e fraternidade e sobretudo amor livre, muito livre. As pessoas espirituais, porém, em regra, não têm graça nenhuma. Não são espirituosas. Já os espirituosos par contre têm muita graça: mas nenhuma espiritualidade. Enjoam o incenso, dos indianos só retiveram o tal Gandhi, que de resto abominam ou de quem, quando menos, escarnecem.
Por isso as pessoas tendem a ser espirituais: porque morrem. E por isso os blogues são antes espirituosos que espirituais: porque não morrem.
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Até aqui, nada de promissor. Agora a pergunta inesperada: o que dizem espirituosos e espirituais das mudanças do clima?
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A resposta, que aliás suscita de antemão a pergunta, encontra-se na primeira página de A Sereia, romance que Camilo publicou em 1865 — e devo sublinhar: 1865 —, Em Casa da Viúva Moré, Editora. Cito a primeira linha, primeiro parágrafo:
"Estamos no dia 15 de Maio de 1762."
(Houve um tempo em que seria possível um seminário anual sobre esta frase. Mais vasta e mais promissora do que aquela que fala da tal marquesa que sai às cinco horas ou coisa que o valha. Aqui é o dia todo, coisa mais espaçosa, e estamos todos nesse dia, coisa democrática, ao alcance de qualquer um, não apenas de aristocratas que saem de casa sabe-se lá para onde. A ficção democrática é o romance, ou o romanesco, como devem preferir as pessoas honestas, se e quando espirituosas.)
Depois vem a segunda frase, começo do segundo parágrafo: "Naquele tempo, os dias de Maio, no Porto, eram temperados, alegres, perfumados, encantadores." E logo a seguir a frase decisiva: "A primavera, há cem anos, aparecia quando o calendário a dava." É preciso resumir: cem anos antes, os portuenses confiavam na primavera e no calendário, ou só no calendário e gozavam a primavera, não saíam de casa às cinco da tarde com um casaco de reserva precavendo-se contra o frio das sete: "nem o peralta portuense levava escondido na copa do chapéu o cache-nez com que, ao anoitecer, havia de resguardar as orelhas da nortada cortante."
Queixa-se ele do frio, portanto. Arrefecimento nocturno, acentuado arrefecimento nocturno impróprio da estação primaveril e também do Porto. Mas queixa-se mais, ou queixa-se mais longe, confrontando o tempo em que as pessoas confiavam — e os "sábios podiam sem receio responsabilizar-se pela pontualidade das estações" — com o tempo coevo em que algo se desconcertou: "os sistemas das regiões altas". E chega então a parte importante, com sublinhados cá muito meus:
"As pessoas muito espirituais receiam que este desconcerto venha a desfechar em acabamento do mundo; outras, mais racionalistas, pretendem que a desordem das estações proceda de causas que, volvido determinado período, cessem de existir. Ninguém se lembrou ainda de conjecturar que as vaporações constantes das fornalhas e o fluido eléctrico de que o ambiente está saturado possam ter influído na substância dos sólidos e fluidos componentes do maquinismo celeste, alterando-lhes o modo de actuarem sobre a terra. Se algum sábio estivesse de pachorra para demonstrar a profundeza desta minha hipótese original, ficávamos convencidos nós de que a civilização do fumo e a dos arames eléctricos, afinal, acabariam de todo com a primavera. Em compensação, os engenhosos destruidores das nossas alegrias de Maio, haviam de inventar uns fogões cómodos para nosso uso em Julho."
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Não sei se aí as pessoas se dão conta do que ali está escrito: nada menos do que a previsão do efeito de estufa ao contrário. A versão original, primeira, pioneira, da teoria do aquecimento global — a explicar o acentuado arrefecimento nocturno durante a primavera do Porto. É isto, são páginas destas que fazem a grandeza dum romancista: o serem muitíssimo do agrado das pessoas muito espirituosas. Já as muito espirituais, fiéis à condição maldita, receiam sempre que o desconcerto, qualquer que seja, desfeche em acabamento dos blogues. Mas este blogue, pelo menos, não acaba.