sábado, 31 de março de 2007

Longa vida aos espirituosos*!


Television is where you watch people in your living room that you would not want near your house.


Groucho Marx

*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

sexta-feira, 30 de março de 2007

Televisão e tragédia

— Anda para lá meio mundo a debater, e outro meio a não querer debater, aquele concurso ou lá o que é, em que ganhou o Salazar.
— Ouvi falar. Chegou aqui ontem um desgraçado que contou mais ou menos tudo. Ouvi-o a dizer ao Aristides: Foste um herói, mas não fizeste nada por Portugal. Claro, não? Só é grande português quem faz alguma coisa por Portugal. O nacionalismo é sempre estreito…
— Mas está certo, homem. Repara bem: o português é definido por.. Portugal. O país dá-lhe um traço de identidade, coisa enorme, património, riqueza inestimável. E ele tem de retribuir: será grande ou pequeno conforme a retribuição.
— Enfastiam-me, essas tuas subtilezas parvas. Não se consegue manter nenhuma conversa de jeito. Chiça! Penico!
— Chapéu de coco, sapatos de ténis, colete de fantasia, ó écloga, Zé Pinto Basto, sua cadela está mais magra do que um cão.
— Isso pelo menos não tem nada de subtil…
— Nada. Mas tem calma, televisão é televisão, tem um efeito, como direi, teatral, catártico, higiénico mesmo, arrisco mais: educativo.
— Não me repitas a treta de que ias ler um livro para o lado quando a ligavam…
— Não, nada disso. Tenho outra definição da televisão: é a possibilidade de estarmos na nossa sala, tranquilos, protegidos, a ver pessoas que não gostaríamos mesmo nada de ter na vizinhança.
— Isso é mais ou menos o mesmo que dizer que vale para nós o que a tragédia representava para os gregos.
— Qual mais ou menos! é exactamente o mesmo. Ou seria... se não fosse só uma piada.

quinta-feira, 29 de março de 2007

Outros planos

— Olha só isto que encontrei agora mesmo…
— O quê? mostra, mostra…
— É uma frase, uma frase do John Lennon: life is what happens to you while you are busy making other plans. Que me dizes?
—Digo que só pode ser plágio, o tipo pilhou em qualquer lado.
— Não estás a ser preconceituoso? Só porque é uma boa frase não pode ser dele?
— Mas não é uma boa frase, homem! “Outros planos”? Que "outros"? Outros em relação a quê? O “outros” está a mais.
— Em português estaria, mas o inglês…
— Ora, o inglês. Qual quê! só pode ser plágio. Outros planos… pfff.

quarta-feira, 28 de março de 2007

Longa vida aos espirituosos*!


Almost all physicians have their favourite diseases.

Henry Fielding


*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

sexta-feira, 23 de março de 2007

Desconchavando

— Hei, homem, por onde tens andado…
— … que tão farta lã tens criado!
— Cheio de espírito, o espírito!
— Reconheço que sim. O crescimento da sabedoria mede-se precisamente pela diminuição do mau humor.
— Ora, a saúde é um estado precário que não augura nada de bom.
— Concordo. Aliás, ninguém sabe o que Colombo teria descoberto se a América não estivesse no caminho.
— Nem mais. Um coxo apesar de tudo caminha.
— E até um olho de vidro vê a própria cegueira.
— Que quer isso dizer?
— Que na luta de ideias são sempre as pessoas que morrem.
— Ah, vejo. Numa avalanche nenhum floco de neve se sente responsável.
— Verdade. Mas a primeira condição para a imortalidade é a morte.
— Tal como a principal causa do divórcio é o casamento.
— Mas não concordo que se use a morte nem como castigo nem como recompensa.
— Então não perguntes a Deus o caminho a seguir para a felicidade, ele indica sempre o mais difícil.
— E se um canibal comer de garfo isso é um progresso?
— Vamos parar com isto?
— Melhor, sim. Está tudo nas mãos do homem, por isso é melhor lavá-las com frequência.

quinta-feira, 15 de março de 2007

Longa vida aos espirituosos*!








Je ne dispute donc pas que la médicine ne soit utile à quelques hommes, mais je dis qu'elle est funeste au genre humain.

Jean-Jacques Rousseau

*Ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de génio motejador, aplaudidos com a gargalhada, e aborrecidos àqueles mesmos que os aplaudem. [Camilo, “Gracejos que matam”, Novelas do Minho.]

terça-feira, 13 de março de 2007

Afinal, afinal...

... a loja não fechou (advirto porém o dono a tomar cautela e a abster-se de mencionar a morte no contexto). Depreendo que foi considerada e adoptada a solução que apresentei. Foi? Deve ter sido. Foi, seguramente. Só pode. Ou então a coincidência é muitíssima e fortuita. Possível, sim, mas tão extraordinária, que apenas a julgo comparável à invenção do cálculo infinitesimal por Leibniz e Newton, ao mesmo tempo e independentemente um do outro, e à descoberta da selecção natural, por Darwin e Wallace, idem. Caramba, que estímulo! que grandeza!

sexta-feira, 9 de março de 2007

A morte foi no ano passado

— Já viste? Alguém deu pela passagem do primeiro aniversário da tua morte.
— Ah, o Sr. Mourão… Curioso, ele que foi o último a chegar...
Mas não é mais ou menos sempre assim?
— Assim como?
— Então... o que chega depois, o que vem demasiado tarde, o que se afirma pela consciência dos predecessores sem se lhes sujeitar, e demais com mortos à mistura, esse, e só esse, pode perceber e dizer que tu eras a alma daquilo.
— Ah... Eu era a alma daquilo... Caramba, rapaz, e se eu era a alma daquilo. Mas se alma era, alma continuo, não é? Nem sequer penada: de nada, alma de nada, ou da eternidade do vazio, ou da voluptuosidade do nada, do lado de cá do mistério, ou do...
— Eh lá, chega! Estás a deprimir-me.

quinta-feira, 8 de março de 2007

Plágio


Laurence Sterne, que no grande Tristram Shandy copia outros autores extensiva e sub-repticiamente, também enviou à amante cópias das cartas que escrevera à mulher anos antes. A coisa é meio grosseira, mas será plágio? Não causou nenhum dano e até pode ter criado alguma mais-valia: Sterne pode ter pensado que as cartas que escreveu à mulher continham as suas mais sentidas e eloquentes declarações de amor, que não poderia melhorá-las e que, por isso, se ainda assim tivesse escrito outras para a amante, seriam inferiores e não conseguiriam exprimir a sua paixão. É claro que a mulher e a amante haveriam de ficar furiosas se tivessem descoberto. Talvez considerassem Sterne preguiçoso, falso, oportunista. Em qualquer caso, o que as agastaria não seria a cópia mas o que na cópia se revelava do carácter de Sterne. Não seria o plágio de si mesmo a causar algum prejuízo: seria a descoberta do plágio.

terça-feira, 6 de março de 2007

A solução

Tristeza, esta coisa de lojas que fecham. Será por falta de tempo ou motivo correlato? Pessoas que escrevem muito e em muitos sítios arriscam a seriedade e a compostura, a qualidade e a coerência. Até a sanidade. Além de outras coisas que não se devem mencionar em público. Demais, este tipo de escrita é sine pecunia. Mas fechar a loja? Será inexorável? Já houve outro protesto.
Pode ser, porém, problema de pessoas individuais, a que eventualmente escapem as colectivas. Parece que Rembrandt assinava quadros dos discípulos: não porque quisesse apropriar-se deles, mas para certificar que estavam a altura dele, o mestre. Daí que a solução não seja o blogue colectivo, mas a pessoa colectiva. Em vez de mil blogues a imitar Pedro Mexia — é um exemplo —, mil bloguistas a escrever para um único blogue — o de Pedro Mexia, para continuar o exemplo —, com todos os posts assinados por Pedro Mexia — é o mesmo exemplo, sim —, que assim certificava que tudo aquilo teria a “qualidade Mexia”, embora não tivesse sido escrito por ele, Mexia (mero exemplo).
Rarefaziam-se os blogues, extirpavam-se as pretensões de originalidade e expressividade, dava-se sério golpe nessa pretensão de autoria, e enfim deixava-se escrever quem quer escrever — o mais importante.
Voilá! Eis a solução. Tem alcance universal. E inclui o plágio. Ou melhor: o plágio é uma variante desta solução.

Plagiemos!

— Lançamos a campanha ou não? Começamos hoje?
— Não sei, tenho ainda algumas dúvidas. Preciso de pensar melhor antes de entrar nisso.
— Ora, deixa de ser timorato. É preciso audácia, muita audácia, a sorte protege os audazes, etc. Aliás, o que é que te pode acontecer? Nada absolutamente! Nada mais incomensurável do que o desdém dos mortos, como sabes…
— Eu sei, mas… uma campanha para reabilitar o plágio?!
— É uma grande ideia! Uma ideia enorme… sobretudo porque prática. Mas nada de reabilitar: apenas praticar. Sem propósito de espécie nenhuma. Prática. De preferência cega. Nada de teorias.
— Mas é impossível voltar à época barroca…
— Vês? Percebes porque és timorato? Lá estás tu com teorias e análises e analogias e conexões e o caraças. Nada disso. Prática, mera prática. Levar por diante o plágio. Plagiemos!
— Plagiemos?!
— Sim, é essa a campanha, homem. Plagiemos! Vamos todos plagiar. Cada romancista, cada poeta, cada jornalista, cada miserável bloguista deve plagiar, deve abster-se de escrever coisa sua e passar a publicar exclusivamente coisas pilhadas a outros. Aí é que se vai ver quem presta, quem tem coisas para dizer, quem sabe e quem não sabe… E que higiene, meus Deus! que limpeza! que aragem fresca no impresso!
— Como na época barroca, portanto.
— Como queiras. Se queres começar já a plagiar é contigo. Aliás, apoio, aliás, aplaudo. Plagiemos. Todos. Aí é que se vai ver quem presta, quem tem coisas para dizer, quem sabe e quem não sabe…
— Começo a ver os contornos da ideia, sim. Hmm… plagiemos, sim, plagiemos… Percebo: nem teorias nem análises nem analogias nem conexões nem o caraças. Nada disso.
— Prática, mera prática. Levar por diante o plágio. Mas nada de reabilitar, ouviste? Nada de propósitos altos ou baixos, graves ou cómicos.
— Como queiras, então. Se queres começar já a plagiar é contigo. E comigo. Aliás, apoio, aliás, aplaudo. Plagiemos. Todos.

domingo, 4 de março de 2007

Paróquias & Livros

Paróquia ou paroquiato. Ou paródia. Também serve para designar grupo de pessoas com interesses comuns. Comunidade. Nada a fazer. São erradicáveis. Segregam sentido de homogeneidade interior e de competição com o exterior, qualquer deles abominável. Por exemplo: certa professora brasileira que acabo de ler (Deus me livre de lhe pôr aqui o nome!), comentando o relevo do Quijote na literatura espanhola descai-se — ou não… — e acrescenta que nada de semelhante existe em língua portuguesa. Dados os encómios que lhe merecem o livro de Cervantes, o acrescento redunda no sublinhado dum traço de menoridade. Ainda há dias li algures, não sei já onde, que Eça não seria possível sem Flaubert… Voilá! Será defeito de Flaubert? Parece que não (mas devia ser!): antes menoridade do tal Eça. Mas dessa menoridade está ele livre. Nenhum autor que se preze deixou de copiar o que entendeu copiável. Nenhum. É preciso copiar. É criativo copiar. E critica-se?! Paróquia, em suma. Aliás escola de meninos invejosos. Reparte-se a literatura em paróquias chamadas nacionalidades, depois julga-se que a repartição corresponde a um fenómeno de evolução natural, assim como a emergência do córtex cerebral ou lá o que é, e depois ficam as mais aptas aquelas nacionalidades que criaram coisas que as outras não alcançam. A conclusão indisfarçada não é estarmos mais ricos por termos qualquer coisa como o Quijote, é ficarmos mais pobres por pensarmos que são os espanhóis que a têm. Paróquia ou paroquiato, cum mil raios.

*

E depois é melhor não publicarem mais livros. Chega. Já só causam desgostos e irritações. Ontem abri um livro que agora saiu. Li no começo dum capítulo: “Ando há três anos (já lhes perdi a conta)…” Chiça! Quem escreveu o que está dentro do parêntesis? A usar assim a primeira pessoa, será decerto a pessoa autora, que assina na capa. Então quem pôs o numeral “três”? Quem contou os anos, guardou bem guardada a conta e a fez imprimir? Ainda a pessoa autora e pela mesma razão? Decerto. Então a pessoa autora não sabe o que significa “perder a conta”, ou antes quis fazer-se interessante, engraçada, solta, arriscar incoerência… E não há outra pessoa chamada editor que a mande dar banho ao cão enquanto lhe depura a prosa? Não há? Se não há, é melhor não publicarem mais livros.