segunda-feira, 28 de agosto de 2006

Golpe de teatro

Ela diz que tem dias, nota…
— Mas quem não tem? Nós não, mas o resto das pessoas… todos têm dias. Dias com o Édipo é que me parece grande despropósito. Pergunto-me aliás se o Freud…
— Tinha dias?
— Não, pergunto-me se o Freud, se tivesse vivido pelos anos 60, teria gostado de conhecer o Vasco Pulido Valente.
— É uma boa pergunta, sim, senhor. Melhor não há. Nem sequer esta, que encontrei há dias: por que raio se fala tanto de complexo de Édipo, quando quem tem medo de ser morto é o Laio? E além disso, pais a matarem ou a tentarem matar os filhos é padrão mais frequente e mais universal do que filhos a matarem os pais: o que até o próprio Laio comprova!
— O Freud, se tivesse vivido nos anos 60, teria gostado mais do Brecht do que do Vasco Pulido Valente.
— Iac! que nojo!
— Podes crer! Mas é o teatro, sabes? O complexo de Édipo vive do golpe de teatro. O Édipo freudiano, acho que é o do Sófocles: o processo através do qual o mesmo Édipo descobre que matou o pai…
— E esse processo é teatral! Por isso… ah, percebi, não descobre, afinal, antes se convence. É isso?
— Eh... tem dias…

quinta-feira, 24 de agosto de 2006

Vida?


e então eu disse-lhe: — Larga-me…
— Devias ter dito deslarga: é o que se usa agora…
— Não interrompas, porra! isto é sério! Eu disse-lhe: — Larga-me, é a minha vida e tu não fazes parte dela!
— Chiça! Disseste-lhe isso? Que coisa horrível… não tens vergonha?!
— Vergonha, eu tenho. O que não tenho é vida. E devias ter dito dissestes-lhe… não é o que se usa agora?
...

sábado, 19 de agosto de 2006

Ralação

—Estou aqui tão ralado, que nem te digo…
— Porquê, homem?
— Aquela amiga do Eduardo Pitta terá chegado bem a Madrid?

sexta-feira, 18 de agosto de 2006

Sans blague!

— Olha-me isto, esta frase que me ocorreu agora: Eu sou eu, e a minha circunstância que se foda.
— ...!
— Que me dizes?
— ...
— Nada? Não dizes nada...?
— Okay, está bem, a tua circunstância que se foda.

quinta-feira, 17 de agosto de 2006

Vozes

— Aquele Mourão — lembras-te dele? entrou já no fim — é que tem dito coisas pertinentes a respeito do assunto Günter Grass.
— Muito pertinentes. Tenho seguido. Curioso como tudo calha sempre no mesmo ponto…
— Sim, sei o que vais dizer. As pessoas lêem, mas esquecem-se de que lêem livros, não outras pessoas. Lêem sempre convencidos de que ouvem a voz de outros, homens e mulheres, autores, autoras…
— Era bom que ficasse por aí. É que, para fazerem isso, têm de ler os livros ouvindo vozes, mas vozes de mortos, de gente já morta, assim como nós ambos, percebes? E um dia sobressaltam-se muito quando algum incidente lhes mostra que afinal estão vivos, não são mortos nem aceitam que lhes imputem vozes.
— Triste, muito triste ver a literatura chegar ao fim sem ter conseguido educar os leitores.
— Ora, que disparate! isso nem dum morto se aceita…
— Mas fica bonito, ou não?

terça-feira, 15 de agosto de 2006

Saudades de Agosto

— Caramba, de lágrima ao canto do olho?
— Lágrima?! Estou para aqui numa choradeira pegada…
— ?!
— Saudades de Agosto… saudades de Agosto
— De Agosto?!
— Não, homem, de Agosto. Por uns tempos, aquilo foi meu…

quinta-feira, 3 de agosto de 2006

Desconcerto

— Olha a mensagem que me chegou…
— Lê alto, se fazes favor, não trouxe os óculos.
— Óculos? Desde quando precisas de óculos para ler?
— Lê, homem, lê lá a mensagem, não divirjas…
— Está bem, mas ainda me vais explicar direitinho isso dos óculos. Diz isto: Os mortos não são coisa com que se brinque. É por essas e por outras que o mundo está como está. Como se os mortos falassem e nós acreditássemos nisso! Deve ser intelectual, não? Pois a minha mulher deve-lhe achar graça mas eu não! Eu sou um engenheiro e católico. O meu amigo é daqueles que merecem que se fale de si no abaixoacultura. Ainda por cima com nome de comunista: Grouxo, toda a gente sabe que foi o russo que descobriu o marxismo e o levou por aí fora, a todo o mundo. São demasiadas coisas más num só blog! Redima-se e leia coisas de nível. Isso faz-lhe mal, amigo. Redima-se. Que me dizes a isto?
— Que desconcerto... Devia ter sido a mulher a escrever-te.